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O vivo e puro amor de que sou feito como matéria simples busca a forma…

Ars longa, vita brevis. Eis aí uma verdade em estado puro. Tão certa é a brevidade da vida, e tão vasto é o universo dos conhecimentos possíveis, que um candidato a uma vida de estudos séria é frequentemente atormentado pelo péssimo hábito de acumular em sua biblioteca centenas de livros que nunca leu e nunca lerá — a imaginar alguma forma de absorver, em meio aos inadiáveis compromissos de uma vida ativa, todos os conhecimentos de que imagina necessitar. Eu sou assim. Meus interesses já foram muito vastos. Eu não conseguia passar menos de três horas em um sebo, garimpando em todas as seções os livros que eu leria nos próximos duzentos e cinquenta anos. Com a exceção dos livros de medicina, de engenharia e de UFOs eu me interessava por tudo; e vivia a planejar um tempo e um espaço em que cada uma daquelas obras poderia ser lida com a calma e com a disciplina necessárias. Vivi assim por quase uma década. Porém, um dia a gente acaba amadurecendo, graças a Deus, e percebe que não vai conseguir ler todos os livros publicados sobre todos os assuntos que interessam à nossa curiosidade sem limites.

Não foi sem alguma resistência que eu acabei aceitando como ‘mandamentos’ da minha vida de estudo algumas das preciosas orientações do Prof. Olavo de Carvalho. Toda leitura deve ser digerida como alimento para a inteligência, todo novo conhecimento deve passar a fazer parte de nós e da nossa inteligência como a alface deixa de ser alface e se transforma em ‘coelho’ depois da digestão. Por isso, a leitura dos grandes livros deve ser lenta, meditada. Se o texto é denso, pleno de significações, é preciso que trabalhemos como um músico ao executar uma partitura: as palavras apontam para determinadas ideias que o autor buscou transmitir por escrito; é preciso, então, que as reproduzamos em nossa cabeça com o imprescindível auxílio da imaginação. Isso é muito sensato. A leitura se torna mais producente, porém fica mais lenta. É aí que entram duas importantes noções: a de ‘interesse genuíno’ e a de ‘livros ótimos’ — verdadeiras tábuas de salvação para os compradores compulsivos de livros e um guia seguro para o planejamento dos estudos.

De que se trata? É simples. ‘Livros ótimos’ não são livros simplesmente bons. Os livros ótimos são os livros imprescindíveis para a suficiente compreensão da área temática delimitada pelo seu ‘interesse genuíno’; são os livros ‘eternos’ (ainda que sua eternidade seja infinita somente enquanto dure, ou tenha durado, determinado estado de coisas). São livros escritos com o coração nas mãos, em que cada palavra tem o peso da experiência. São, em resumo, os livros nos quais seus autores investiram sua vida — e por cujas ideias, com muita frequência, estariam dispostos a perdê-la. Sim, porque, ora!, se o próprio autor não derramou sua vida para escrever sua obra, que razões eu teria para gastar uma parte preciosa da minha própria vida em lê-lo? Os livros ótimos são escritos com a matéria da vida. Tudo o mais deve ser classificado como literatura de segundo escalão, que você lerá um dia se tiver tempo — provavelmente terá muito tempo, mas já não encontrará motivos para recorrer a eles.

A escolha dos livros ótimos depende da delimitação, ainda que provisória, de um círculo de interesses. Motor de suas inquietações intelectuais, o ‘interesse genuíno’ é o conjunto das questões que sempre retornam. São perguntas que despertam a melhor parte de suas energias psíquicas. Com essas perguntas você passaria — e passa — as suas horas mais preciosas ruminando ideias, buscando conexões, sondando a opinião dos sábios. Você deve verdadeiramente amar o seu ‘interesse genuíno’. E esse interesse, um vivo amor que o constitui como indivíduo, como matéria simples buscará a devida forma de manifestação.

O interesse genuíno não se confunde com a simples curiosidade. Você pode ter curiosidades sobre determinado tema. Nesse caso você pesquisa no Google ou compra uma revista de variedades e resolve parcialmente a inquietação. Tudo isso pode até ser superinteressante. Mas uma vida de estudos não se faz pela acumulação de um punhado de curiosidades, mas de um interesse genuinamente vital. Como se expressa o Prof. Olavo de Carvalho, que cito de memória: ‘o interesse genuíno é aquele que o leva a dizer: ‘eu tenho que descobrir a resposta dessa questão, pois do contrário eu vou morrer’. Um interesse genuíno é uma coisa muito pessoal — embora possa, ou talvez deva, acabar ganhando a forma de algo objetivamente valioso.

Eu tenho tido particular dificuldade em limitar minha curiosidade intelectual a um ‘interesse genuíno’ identificável. É que são tantos os interesses que me parecem genuínos… mas não pode haver tantos que realmente mereçam esse nome! Muitas das pessoas que foram despertadas para a vida intelectual pelo Prof. Olavo de Carvalho sentem, no começo dos estudos, uma assustadora confusão; geralmente descobrem que sobre o terreno frágil de uma deficiente (de)formação de base foram acrescentados alguns anos de um feio e disforme ensino universitário. O resultado disso é que geralmente não estamos prontos para compreender minimamente os grandes poetas, os maiores romancistas e os mais interessantes filósofos da Civilização Ocidental; não podemos, portanto, tomar nosso lugar na ‘grande conversação’ de que falou Mortimer Adler. Diante disso, é preciso suprir de alguma maneira essa deficiência de formação até que, naturalmente, os interesses genuínos vão-se mostrando e pedindo — na verdade, exigindo — a devida atenção. Essas exigências, começo a percebê-las hoje. Uma exigência de foco, de explicitação das questões cujas respostas venho buscando em meio a uma névoa que ainda não permite uma completa identificação da origem de todas essas inquietações.

Em breves linhas, comecei a perceber que essas questões giram em torno daquilo que Platão e Aristóteles chamavam de ‘a melhor vida’. Entendam. A questão que aperta o meu sapato não é tanto identificar ‘a melhor vida do homem em geral’, mas a melhor vida que eu e as pessoas mais próximas podemos levar. Como agir com a melhor parte de nós mesmos? Como tomar as melhores decisões? Como levar uma vida excelente? O que devo saber? Que reações afetivas devo cultivar diante das diversas situações da vida? Qual é a efetiva dimensão da liberdade humana? Tenho sérias razões para suspeitar que grande parte dos meus interesses, por mais afastados que estejam do centro, tem como núcleo as chamadas ‘ciências práticas’ — nas quais Aristóteles incluiu a Ética e a Política e nós hoje incluímos, a seu modo, o Direito. Mas há um detalhe importante (que tem o potencial de transformar tudo isso em palha): é que tudo isso não faria sentido e não teria o sabor que tem se não fosse um instrumento para a busca da santidade. Claro! A melhor vida não é completa, e principalmente não é a melhor, se não é um caminho em Deus e para Deus.

Embora satisfeito por ter começado a concretizar um plano de estudos mais sensato e de execução possível, acabei percebendo, depois de meditar sobre a dimensão do problema, que para bem estudar as ‘ciências práticas’ é necessário um conhecimento muito vasto — vasto ao ponto de me jogar novamente no grande mar de todos os assuntos — e profundo — profundo o suficiente para afastar qualquer resquício de auto-ajuda ou de aconselhamento sentimental que um empreendimento dessa natureza pudesse carregar. O campo dos interesses continua muito variado, porém agora há um núcleo de questões que dá sentido e significado às leituras. Com esse núcleo nas mãos a iluminar parcialmente o caminho, é preciso, no começo, ir tateando o território em busca dos saberes que serão necessários para melhor explorá-lo e, claro, os saberes que serão prejudiciais ou simplesmente desnecessários.

Um esquema desses saberes deve levar em conta: i) aquilo que ‘pesa’ inexoravelmente sobre o indivíduo, que em geral ele não controla (local e momento em que nasceu, família em que nasceu, a própria realidade física, as normas jurídicas etc); ii) aquilo que interfere nas decisões individuais e que se pode, de algum modo, controlar (seu conjunto de crenças, seus hábitos, seu corpo, sua alimentação, sua memória e sua imaginação, suas amizades, o local em que mora, sua vizinhança, seu estado civil, sua profissão etc); iii) inteligências que podem ajudá-lo (Deus, os anjos, os santos e as demais pessoas por si ou através das instituições etc); iv) o que está ao alcance do indivíduo fazer para ter a vida plena; v) quais são os sinais da vida plena em cada pessoa que a almeja; vi) como expressar essa vida plena (Mt 5,16); e vii) como transmitir, por assim dizer, sua ‘semente’ aos outros.

Esse vasto campo pede uma imaginação rica e bem treinada (daí a necessidade da literatura de ficção), um razoável conhecimento da história da Civilização Ocidental, uma intimidade com a Filosofia Antiga e Medieval (a Filosofia Moderna e a Contemporânea podem esperar), aí incluídas a Metafísica, a Física, a Psicologia, a Poética, a Retórica, a Dialética, a Lógica, a Ética e a Política inauguradas por Platão e Aristóteles (e seus desdobramentos), a prática de uma religião tradicional, a leitura da vida dos santos, a convivência com pessoas boas e muita oração.

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