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Sherlock Jr. (1924): um homem em busca de orientação

“Força é mudares de vida”
Torso Arcaico de Apolo, de Rainer Maria Rilke

O personagem principal do filme Sherlock Jr. (1924), com Buster Keaton (que também é o seu diretor), é um atrapalhado funcionário de um cinema de uma pequena cidade, que estuda nas horas vagas, por conta própria, para ser detetive particular.

Um antigo provérbio abre o filme: “Don’t try to do two things at once and expect to do justice to both” — Não tente fazer duas coisas ao mesmo tempo esperando corresponder igualmente a ambas.

Apaixonado por uma donzela, e sem dinheiro, o personagem principal acaba sendo acusado injustamente de ter furtado o relógio do pai da moça. Esse fato leva ao rompimento da fria e desajeitada relação em que ambos começavam a investir. As marcas da injusta acusação e o súbito rompimento do namoro encontram na sua vocação frustrada de detetive um terreno fértil para sua espetacular imaginação.

Estafado pela vida dupla que levava, ele então dorme no trabalho durante a projeção de um filme. No sonho que então lhe surge ele é chamado, na condição de famoso detetive, a desvendar o furto de uma preciosa joia na casa de um rico cidadão. Em uma das cenas mais divertidas do filme, em que ele está ora em perseguição e ora sendo perseguido pela dupla de ladrões, ele acaba pegando carona na motocicleta de um policial, que por descuido cai numa poça de lama e o deixa sozinho. Sem saber que estava só e no pleno comando da motocicleta, ele passa ileso por uma série de situações perigosas, confiando que o policial é quem o estava livrando do caótico trânsito. “Cuidado ou um de nós vai se machucar!” – diz ele, na verdade para si mesmo, enquanto escapa de incríveis acidentes. A atribuição, aí já imaginária, de sua segurança à perícia do policial (que na verdade já o havia deixado só há muito) lembrou-me a curiosa projeção que o personagem de Edward Norton protagonizou no filme Clube da Luta (1999).

No final das contas, a moça descobre o verdadeiro autor do furto – o rival do aspirante a detetive, que também disputava o coração da donzela – e busca reatar o laço rompido. Então encontra Sherlock Jr. recém-desperto do sonho, na sala de projeção do cinema em que ele trabalhava, e lhe pede desculpas. O rapaz se mostra bastante desajeitado e desorientado sobre como se comportar diante daquela moça. Essa característica aliás já aparece no começo do filme, na cena em que ele acaba sendo acusado do furto do relógio. A falta de orientação para a vida afetiva talvez tenha sido o móvel do investimento que ele fazia em sua discreta carreira de detetive. Faltavam-lhe informações básicas sobre como se relacionar com as pessoas: quem sabe ele as descobriria secretamente como detetive particular? É curioso que as primeiras regras que aprendeu nos livros foram justamente “reviste todo mundo” e “siga o suspeito de perto” – ou seja, orientações que justamente o estimulam a estabelecer um contato mais próximo com as pessoas em busca de sondar suas vidas e recolocá-las em seus devidos lugares (de culpado ou de inocente).

A busca de orientação e de organização é uma necessidade frequente de Sherlock Jr. Seus olhos carregados de ansiedade, enquanto lê o manual de investigação, são sinal de que deseja muito, e urgentemente, receber informações importantes do mundo ao redor. Porém, “antes de desvendar qualquer mistério, você deve limpar esta sala” – diz-lhe seu chefe, já impaciente com suas divagações. É a velha lição: um coração atribulado, confuso, cheio de informações inúteis e descartáveis não conseguirá estabelecer relações saudáveis com as pessoas e não está pronto para conhecer a verdade. Antes, é necessário limpá-lo. Por estar com as lentes sujas pela desorientação, o modo que encontrou para se localizar no mundo o levará necessariamente a classificar as pessoas em categorias (“culpado” ou “inocente”) que na verdade não o ajudam a estabelecer relações sinceras com elas.

Diante do pedido de perdão da namorada, ele se mostra absolutamente desorientado sobre como agir. À falta de livros e de tempo para buscar um conselheiro – a que de resto ele parece não ter acesso na sua vida solitária – é a arte quem lhe ensina como agir: em uma inesquecível cena, sua donzela está de costas para o filme projetado na tela do cinema, no qual ele assiste a um galã muito bem preparado que toma a mão de sua amada em beijos, a abraça e finalmente a beija carinhosamente. Sherlock Jr. assiste atentamente a cada ato e os repete com sua namorada. Na sequência da projeção, o galã aparece junto com sua mulher e uma série de três ou quatro filhos. Atônito e surpreso com aquela (até então, para ele) imprevisível situação, ele parece concluir, pela primeira vez na vida, que “aquilo dá nisso”; viu pela primeira vez dentro de si a potência da paternidade (e portanto também da responsabilidade) e diante de si aquela mulher capaz de atualizá-la. Novamente ele se vê confundido pelo desconhecido. A arte, como colocada nessa inesquecível cena, não apenas nos orienta mas nos revela e nos desafia.

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