fbpx

A fuga do sr. Monde, de Georges Simenon

maigret-theredlist

A fuga do sr. Monde, de Georges Simenon, relata a história de um industriário frustrado com sua vida — com seu casamento, com seu trabalho, com sua relação com seus empregados, com o seu filho. Por muito tempo ele deixou a vida levá-lo. Sua insatisfação existencial é visível. São tantos elementos fora do lugar que é difícil reconstruir sua biografia vivendo a mesma vida, respirando aquela atmosfera fria e opressiva que ele encontrava em seu lar e no seu ambiente de trabalho. No dia de seu aniversário, decide desaparecer. Raspa o bigode, compra roupas baratas e se manda para o interior da França. Até seu definitivo retorno à vida real passam-se alguns meses. Nesse meio tempo, ele conhece uma dançarina, garota de programa, com quem passa a manter relações; começa a trabalhar em um cabaré e encontra, por acaso, sua primeira mulher, decadente e viciada em morfina, com quem se encontra com regularidade. Durante o tempo em que esteve desaparecido, reflete sobre sua rotina e sobre as lacunas existenciais que ele imaginava em sua alma. Assim que sai de casa, por exemplo, imagina-se livre para namorar uma linda donzela durante uma viagem de trem, coisa que nunca havia feito até então. Em outro contexto, quando está tomando um cafe com a sua namorada-dançarina, também se lembra de ter invejado homens que vira nessa situação. Após retornar para casa, retoma sua antiga rotina — agora sem “fantasmas, nem sombras”.

A fuga do sr. Monde é a história de um homem que pegou o controle remoto de sua vida e apertou o botão de pausa; entrou em um túnel do tempo e, lá, buscou resolver antigas pendências sentimentais, experimentou um outro tipo de liberdade (da qual, ao que tudo indica, nao pretendia gozar indefinidamente) e retornou, transparecendo absoluta normalidade, à sua antiga vida. Ao final de tudo, diz o narrador, ele era um homem mais sereno.

Quando, em determinado ponto da história, o sr. Monde tenta administrar a dependência de morfina da ex-mulher, ministrando-lhe pequenas doses, reflete: “Ela se resignou como uma menininha. E, como uma, era ao mesmo tempo ainda mais criança e mais velha do que quando a vira na cidade durante o dia. Ele também, quando ficava quinze minutos na frente do espelho para se barbear, com freqüência tinha a impressão de ser uma criança envelhecida. Seria um homem acaso outra coisa? Falamos dos anos como se eles existissem. depois percebemos que entre o momento em que ainda íamos para a escola, entre o momento, inclusive, em que nossa mãe nos arrumava na cama para dormir e o que vivemos agora…”

O intrépido inspetor Maigret não desempenha papel relevante nesse pequeno romance. Ele é procurado, no início, pela sra. Monde, que lhe relata o desaparecimento do marido. A história que se segue é o relato do que aconteceu nessa dimensão existencial aberta pela fuga do industriário.

O sr. Monde voltou de sua peregrinação pelo interior da França um homem mais sereno. Isso não modifica a qualidade de sua conduta: uma fuga. Diante de uma situação insuportável, é possível optar pelo enfrentamento corajoso ou pela fuga. Que fazer? That’s the question. Seja como for, o sr. Monde voltou, “sem fantasmas, nem sombras”, e tendo nos olhos — e isso é um ponto relevante que não pode ser desconsiderado — “uma fria serenidade”. Um sujeito desorientado e insensível ou um homem que buscou trabalhar sobre sua própria biografia? O livro nos dá algumas pistas para responder a essa questão, mas deixa à imaginação do leitor a tarefa de reconstruir, a partir do retorno ao lar, aquilo em que se transformou a nova vida do sr. Monde.

Uma outra interpretação desse pequeno romance, que me surgiu como um raio quando eu terminava este post,  pode considerar a fuga do sr. Monde como um símbolo de sua atividade onírica. Dessa dimensão, em que passado, presente e futuro se mesclam a símbolos, medos e desejos, podemos efetivamente voltar mais serenos — ainda que não saibamos o que se passou enquanto nosso corpo tranquilamente descansava.

Talvez tenha sido essa a intenção de Simenon: narrar a gênese e o desenvolvimento de um sonho. O industriário, ao acordar no dia de seu aniversário, compreende que aquela vida lhe é insuportavelmente monótona e fria. Deixando a mulher na cama, dirige-se ao trabalho. Nesse meio tempo lhe surge a ideia de escapar de sua vida real, de explorar outras possibilidades. A vida que leva então é permeada da satisfação de seus desejos e da resolução de antigas pendências sentimentais.

Contribui para a verossimilhança dessa interpretação a ausência, na história, do inspetor Maigret — pois ele não integrava, propriamente falando, o drama existencial do industriário até a sra. Monde tê-lo procurado na delegacia.

Related Articles

O estrangeiro, de Albert Camus

O Estrangeiro, de Camus, relata a vida insossa do sr. Meursault, um homem que vive na Argélia francesa. No começo do romance, o personagem toma conhecimento, por telegrama, de que sua mãe, que ele havia colocado em um asilo para velhos, faleceu. Sua atitude diante desse fato, seu comportamento no velório e no enterro da mãe, demonstram que ele, ali, já era um ser humano frio, sem afetos.
Sua rotina é a de um funcionário de um escritório, sem grandes perspectivas, sem grandes planos. Sua indiferença diante das demandas que o mundo lhe apresenta é impressionante. Sua namorada, por exemplo, pede-lhe em casamento. Sua resposta: tudo bem. Diante de tamanha frieza, ela lhe pergunta se a sua resposta teria sido a mesma caso outra mulher lhe houvesse feito semelhante proposta: possivelmente sim — responde. Quando seu chefe lhe oferece uma promoção, uma boa colocação na filial do escritório em…

Quem quer mudar o mundo?

Em um dos meus últimos artigos (“Direita e esquerda”), pretendendo indicar que a complexidade da vida não comportava uma posição unívoca em relação à modalidade de participação do Estado na vida social, acabei dizendo que eu era ao mesmo tempo conservador e progressista. Com isso corri o risco de ter dito muito sem, na realidade, dizer nada. Vejo, então, que preciso me explicar.

A conservação e a renovação da vida (e, portanto, das ideias e dos costumes) são duas realidades das quais não podemos escapar. A saúde de uma nação depende do equilíbrio entre essas duas funções. Por circunstâncias diversas, ocorre que em determinadas épocas a visão conservadora ou a progressista toma conta do imaginário social e passa a dominar os discursos. Com o tempo, a hegemonia de uma visão a torna onipresente. Se não há dinamismo suficiente para que ela seja renovada à luz das circunstâncias novas de cada dia, ela…

Joaquim Nabuco fala sobre Camões

“O homem é o nome. A parte individual da nossa existência, se é a que mais nos interessa e comove, não é por certo a melhor. Além desta, há outra que pertence à pátria, à ciência, à arte; e que, se quase sempre é uma dedicação obscura, também pode ser uma criação imortal. A glória não é senão o domínio que o espírito humano adquire dessa parte que se lhe incorpora, e os Centenários são as grandes renovações periódicas dessa posse perpétua”.

“Não, em toda a parte a ciência prepara a unidade, enquanto a arte opera a união”.

“É assim a obra de arte; ela força o artista a não a deixar incompleta, e o faz sentir como César, o qual fez da ambição uma arte, que nada está feito enquanto resta alguma coisa por fazer. Se não fosse assim, quantas obras-primas não ficariam, como o S. Mateus de Miguel Ângelo,…

Memória, narrativa e Filosofia (Olavo de Carvalho)

Na Aula n. 219 do Curso Online de Filosofia, de 07.09.2013, o prof. Olavo de Carvalho falou belissimamente sobre a capacidade expressiva como pressuposto da atividade filosófica. Segue o trecho, não revisado pelo professor:

”(…) A pior maneira de se estudar filosofia é tomar certas questões gerais que você chama de ´problemas filosóficos´e colocá-las na cabeça do aluno. Por exemplo: Existe o mundo exterior? Podemos conhecer a ´coisa em si´? Assim você começará a partir de formulações já muito elaboradas e não da experiência originária. O problema filosófico apresentado tem de lhe mostrar suas credenciais. Primeiro ele tem de provar que ele é um problema de verdade, e não um erro de linguagem. Em segundo lugar, ele tem de provar que ele é importante, que ele é vital, e principalmente que ele é vital para você na sua situação existencial real. [Como estamos buscando] o verdadeiro ensino da filosofia, no…

Responses