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O estrangeiro, de Albert Camus

O Estrangeiro, de Camus, relata a vida insossa do sr. Meursault, um homem que vive na Argélia francesa. No começo do romance, o personagem toma conhecimento, por telegrama, de que sua mãe, que ele havia colocado em um asilo para velhos, faleceu. Sua atitude diante desse fato, seu comportamento no velório e no enterro da mãe, demonstram que ele, ali, já era um ser humano frio, sem afetos.

Sua rotina é a de um funcionário de um escritório, sem grandes perspectivas, sem grandes planos. Sua indiferença diante das demandas que o mundo lhe apresenta é impressionante. Sua namorada, por exemplo, pede-lhe em casamento. Sua resposta: tudo bem. Diante de tamanha frieza, ela lhe pergunta se a sua resposta teria sido a mesma caso outra mulher lhe houvesse feito semelhante proposta: possivelmente sim — responde. Quando seu chefe lhe oferece uma promoção, uma boa colocação na filial do escritório em Paris, sua resposta é igualmente indiferente: tanto faz.

Meursault é um indivíduo frio, sem vínculos sociais, sem amor a nada e a ninguém. Convidado por alguns amigos a passar um final de semana na praia, ele acaba assassinando a tiros, “por causa do sol”, um árabe que havia tido uma desavença com seu amigo Raymond. Na sessão de julgamento, ele se comporta com uma estranha indiferença — se bem que tem, aí então, alguns lampejos de consciência sobre a possibilidade concreta de ser executado. A tônica do julgamento parece ser a personalidade do acusado, e nem tanto o crime barbaramente cometido. Ficamos com a impressão que ele fora condenado mais por não ter chorado no enterro da mãe do que por ter desferido cinco tiros contra o árabe na praia. Meursault é condenado e será executado pela Justiça. No final de sua narrativa — é ele quem narra a história — conclui que foi feliz; e que para completar aquela felicidade, “para que tudo ficasse consumado, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muito público no dia da minha execução e que os espectadores me recebessem com gritos de ódio”.

Como o livro é narrado pelo próprio personagem — que, portanto, conta a sua história com a medida exata de sua consciência –, e como Camus cuidou para que da narrativa dos fatos não surgissem para o leitor, com clareza, juízos de valor sobre a conduta de Meursault, o livro acaba dando margem a interpretações muito diversas. Há, por exemplo, quem veja o personagem principal como alguém que está disposto a morrer pela verdade — interpretação, aliás, que a mim parece muito bizarra e ginasial. Tudo indica exatamente o contrário: quando o Sol, símbolo da verdade, do conhecimento claro, apareceu-lhe na praia, seu inexplicável ódio aflorou. O convívio com os amigos, a presença do Sol, tudo isso lhe parecia insuportável. Meursault queria refugiar-se, queria garantir para si que não teria parte em eventos sociais como aquele e, principalmente, que não teria mais sobre si, como uma bofetada, a luz do Sol.

Muita água teve de passar debaixo da ponte para que indivíduos como Meursault se multiplicassem na nossa sociedade de massas. A ideia de que a liberdade é a fonte suprema da felicidade, de que o indivíduo basta-se a si mesmo, pode, se explorada e propagandeada suficientemente, ajudar na desintegração social.

Meursault não quer jogar o jogo da sociedade — que, em alguma medida, é reflexo da ordem divina; prefere interpretar o mundo à sua própria imagem e semelhança. Não assusta que tenha tido dificuldade de encontrar a razão pela qual assassinou o árabe — e tenha, na presença do juiz, atribuído o ato à presença do Sol. Também não nos deve espantar que ele imagina como coroamento de sua felicidade uma multidão de pessoas recebendo-o com gritos de ódio. Se isso não é o inferno, pelo menos é dele uma caricatura assustadora.

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