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Onde estão todos eles?

“I´m goint to be on television!”

Grandes multidões em grandes espetáculos; milhares de pessoas matando o tempo, jogando conversa fora, idolatrando artistas vulgares: é verdade que não é possível culpar a modernidade por esse fenômeno, de que a história ocidental está repleta.

Por muito tempo, na minha adolescência, eu freqüentei shows de rock e de música pop. Eu gostava de ver o desempenho dos artistas ao vivo e de saber que aqueles caras, que eu ouvia em casa através de LPs e de fitas K7, estavam ali ao alcance do meu olhar.

Estou escrevendo uma entrada em minhas memórias de infância e resolvi procurar no YouTube alguns vídeos de canções que ouvia naquela época. Procurei então, especificamente hoje, algum registro da música Festa do Interior, cantada pela Gal Costa. Encontrei um vídeo em que ela canta essa canção, depois de Açaí.

No início desse pequeno vídeo, o locutor relata o estrondoso sucesso que aquela turnê de Gal Costa vinha tendo. Estávamos ali no ano de 1982. As apresentações completavam, então, a marca de 500 mil espectadores apenas em São Paulo. Somente em Brasília, 200 mil pessoas assistiram a uma única apresentação. Uau!

As imagens de um auditório lotado, de pessoas fascinadas batendo palmas, esperando, com os olhos muito abertos, a entrada da pop star, registraram em minha alma hoje um inusitado sentimento de compaixão por cada uma daquelas vidas. Meu imaginário não encontra agora uma melhor matriz intelectiva para refletir sobre a cultura de massas do que a solitária e dramática vida daquela viúva, mãe de um viciado em drogas, do filme Requiem for a dream (Réquiem para um sonho, um filme de 2000). O sangue corria mais veloz e alegre em suas veias quando ouvia seu apresentador predileto dizer: We got a winner! We got a winner! Essa esperança de alguma-coisa-que-não-se-sabe-bem-o-que-é, mas que os espetáculos de massa geralmente tentam cultivar, é a chave para despertar a atenção e capturar a vida de milhões de miseráveis esperançosos de que possam, de algum modo, fazer parte daquele espetáculo. Sim, o artista faz sucesso, é admirado por todos, e eu faço parte disso. Eu estou aqui. Assisto, logo existo…

Naquele vídeo, a multidão aplaude e se maravilha quando Gal Costa brinca, antes de começar a cantar seu sucesso: Festa? Festa? Festa? — We got a winner…

Onde estão aquelas pessoas hoje? Eu estou aqui e não posso ouvi-las. Esse silêncio me assusta…

Enquanto observava as imagens da turba em êxtase surgiu daquela dimensão espiritual que comumente se comunica com minha consciência desperta a voz de um poeta. Lembrei-me de uma poesia, da solução que ela deu a esse grandessíssimo dilema existencial. Que alívio… É bom saber que alguém já teve a mesma sensação que você, e que a registrou de um modo memorável. Onde estavam os que há pouco dançavam, cantavam e riam ao pé das fogueiras acesas? — perguntou-se Manuel Bandeira em uma época em que a literatura brasileira ainda tinha alguma coisa a dizer à humanidade. Não é a primeira vez que o poeta pernambucano vem em meu socorro (com a Última canção do beco ele já me ajudara a ordenar algumas impressões difusas que me atormentavam).

Em Profundamente ele descobriu onde estão todas essas pessoas. Desde então, não é mais necessário procurar por elas. É preciso apenas rezar por suas almas.

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Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de Bengala

Vozes, cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.

 

No meio da noite despertei

Não ouvi mais vozes nem risos

Apenas balões

Passavam errantes

Silenciosamente

Apenas de vez em quando

O ruído de um bonde

Cortava o silêncio

Como um túnel.

Onde estavam os que há pouco

Dançavam

Cantavam

E riam

Ao pé das fogueiras acesas?

 

— Estavam todos…

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