fbpx

As duas pontas da vida

corda

Quem lê o romance mais consagrado de Machado de Assis conhece em estado puro o maior enigma da literatura brasileira: será que Capitu teve um caso com Escobar? Provavelmente nem mesmo o escritor sabia ao certo. Traiu ou não traiu? O caso é que esse drama conjugal nunca me interessou muito. Imagino que Dom Casmurro também tinha coisa mais importante com que se preocupar: a eventual infidelidade de Capitu era apenas um pequeno detalhe no panorama maior do convívio com essa personalidade tão ambígua e tão dominadora.

O encontro de um pré-adolescente mimado com essa personalidade forte o atordoou muito — a ponto de lhe tirar o chão. Por isso, vejam, Dom Casmurro traiu-se a si próprio. Eis aí a questão central — e a razão pela qual o protagonista escreveu suas memórias. Esse, sim, é o aspecto do livro de Machado de Assis que mais me intriga: logo no segundo capítulo, ao justificar a narrativa que começara a empreender, Dom Casmurro evidenciou que desejava, com a história, “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” Segundo disse, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. (…) Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”.

Que confissão! Cabe aqui a pergunta: como é que uma pessoa pode descobrir que em sua vida “falta ela mesma”? No caso de Dom Casmurro, essa descoberta veio do contraste entre si e Bentinho: um não se reconhecia no outro. Contar a sua própria história foi a melhor maneira que ele encontrou de ajustar as contas consigo mesmo. Em Bentinho, o jovem que agia (ou se deixava agir) e o centro decisório (sua inteligência mesma) estavam desajustados. Vejam que Bentinho já estava de alguma forma, desde cedo, vinculado a Capitu, mas só “descobriu” isso quando ouviu, detrás da porta, uma conversa entre José Dias e sua própria mãe. Faltou-lhe, antes, sensibilidade e presença de espírito suficiente para apossar-se desse sentimento. Quando a informação chegou ao cérebro, ele já estava dominado. Bentinho jamais decidiu unir-se a Capitu; e, pior, jamais compreendeu a dimensão dessa união. Os olhos de ressaca o hipnotizaram. Se você é jovem, que lhe sirva esse instrutivo exemplo do que são capazes uns tais olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Resultado: o homem se perdeu para nunca mais se encontrar — se bem que o exercício da literatura (o contar a própria vida) o ajudou a esclarecer um pouco as coisas.

O impulso que Dom Casmurro teve de contar a própria vida a fim de lhe dar certa unidade (atar-lhe as pontas) surgiu-lhe na velhice. “Em que espelho ficou perdida a minha face?” — poderia ser a epígrafe dessa narrativa. De modos diferentes, a literatura nos ajuda a perceber que “entre o sono e o sonho, entre mim e o que em mim é o quem eu me suponho corre um rio sem fim”. Vejam o meu caso: eu comecei a escrever este texto para falar de pessoas que, já sendo Dom Casmurro, não reconhecem em si o Bentinho que certamente foram; ou que, já sendo Dom Casmurro, cristalizaram em seu comportamento características típicas de Bentinho (e nunca mais as deixaram). Mas a esta altura vejo que me perdi nas vagas desse mar e, agora, já não há espaço suficiente para introduzir esse assunto tão complexo. Peço paciência. Tentarei ligar as duas pontas desse assunto em uma outra ocasião. Enquanto isso, estou garimpando em sebos em busca da História dos Subúrbios.

(Publicado no Diário do Rio Doce, em 26.01.2016)

Related Articles

Últimas palavras de Bento Santiago, o Dom Casmurro: o exame de consciência em seu leito de morte

À beira da morte, sinto-me estimulado a reavaliar, leitor, a minha história, em uma nova e quiçá derradeira tentativa de unir as duas pontas de minha vida. Ficarão registradas aqui as principais linhas daquilo que essa tarefa tem acrescentado à minha já conturbada vida reflexiva.
Tenho convivido com algumas enfermeiras, que vêm cuidando do que restou de minha saúde; o modo como essas moças tratam os moribundos – como tratamos, nos minutos que antecedem a partida, os parentes distantes que conduzimos à estação, quando sua visita já nos começava a causar contratempos – despertou em mim um sentimento novo: estou finalmente naquela estação tão temida, aguardando o último trem da noite – não desta ou daquela noite, mas de outra maior. Tenho as malas prontas ou esqueci algo? Conseguirei um bom assento? Deus me conduza a um bom descanso! Não me fiz padre; mas, valei-me Nossa Senhora!, sempre nutri grande apreço pelo sacerdócio e pelas coisas…

Para estudar de verdade, é preciso que você queira de verdade

O intelectual é um consagrado: é com essa assertiva que o Sertillanges começa o primeiro capítulo de seu livro “A Vida Intelectual”. Mas quem é o intelectual? Intelectual é aquele que pretende direcionar o olhar de seu espírito para o alto, encontrar as causas primeiras e, se possível, busca propagar o conhecimento da verdade e do bem entre aqueles que estão ao seu alcance.

O intelectual deve desenvolver seu próprio espírito a fim de ter um contato pessoal com o Verbo Divino. Essa prática lhe dará acesso ao santuário admirável do conhecimento. O estudioso pode se dedicar aos estudos em tempo integral ou pode ter uma profissão que lhe dê o sustento. O importante é ter uma dedicação profunda e séria. Só àqueles que se dedicam de coração a verdade se entrega; a verdade só se entrega a quem se faz escravo dela.

Antes de entrar na vida intelectual é necessário avaliar nossas reservas. A entrada nessa vida…

Sete livros para começar bem a sua vida de estudos

Pode parecer estranho o que digo, mas ninguém começa a estudar pelos livros.

Numa vida de estudos séria somente buscamos os livros depois de cumprir algumas etapas importantes, que são uma espécie de análise da qualidade do solo e a preparação para o cultivo.

O solo, aqui, é sua alma.

A análise do terreno e sua preparação para o trabalho giram em torno da angústia radical que leva o estudante buscar, nos estudos, as respostas que o inquietam.

Essa angústia, entretanto, não costuma aparecer clara como o Sol numa manhã de sábado. No começo, o estudante angustiado caminha no escuro – embora sinta, rondando em torno de si, um emaranhado de questões que o impulsiona a entrar em contato com os escritores que prometem ensiná-lo a pensar e a entender a realidade.

O que fazer, nesse cenário, quando você sabe que deve começar a…

Cartas a um jovem poeta (Rainer Maria Rilke)

”(…) inquieta-se quando suas tentativas são recusadas por um ou outro redator. Pois bem — usando da licença que me deu de aconselhá-lo — peço-lhe que deixe tudo isso. O senhor está olhando para fora, e é justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ninguém o pode aconselhar ou ajudar, — ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: ‘Sou mesmo forçado a escrever?’ Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar àquela pergunta severa por um forte e simples ‘sou’, então construa a sua vida de acordo com esta necessidade. Sua vida, até em sua…

Responses