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Meus encontros com o verdadeiro, com o belo e com o bem

No panorama das duas famílias que se uniram no casamento dos meus pais não conheço nenhuma vocação intelectual desenvolvida. Nas raízes próximas da minha família tínhamos fazendeiro, vigilante noturno, marceneiro, policial, comerciante, representante comercial, ajudante de enfermagem, cozinheira, costureira, secretária: são essas as profissões que me antecederam na carne. No meio desse deserto intelectual nasceu uma árvore resistente: o meu pai.

Pouco ou nada posso dizer sobre esse fenômeno ecológico – que é menos incomum do que me pareceu durante os muitos anos da minha adolescência. Para meu avô, estudar era coisa ‘pra rico’; pobre tinha é que trabalhar. A verdade é que diante da convocação de meu avô para que enfim fosse iniciado no ofício da marcenaria em sua oficina, meu pai frustrou-lhe as expectativas e, em um gesto de independência cuja matriz talvez tenha sido inoculada em mim, decidiu que iria terminar o segundo grau através de um curso supletivo visando ao vestibular para a Faculdade de Direito. Sem esse grito às margens do Ipiranga do início de sua vida adulta, provavelmente eu não estaria aqui escrevendo estas mal-traçadas linhas, atento aos rudimentos das minhas memórias.

Através do horizonte, limitado é bem verdade, a que consigo ter acesso hoje, vejo que foi no contexto dos estudos do meu pai, durante da Faculdade de Direito (incluído aí tudo o que disso derivou: seus livros em casa, os discos de vinil, o início de sua vida na advocacia, o resultado mesmo de seu trabalho a sustentar a nossa casa e as crises familiares que também nessa época começaram a surgir), que se foi despertando em mim a curiosidade pelo conhecimento e um forte impulso em direção às pessoas boas e às coisas belas.

Não tenho condições de sondar agora outra razão de unidade por trás de diversos acontecimentos além do fato de terem sido ‘minhas próprias experiências’ e de terem contribuído (talvez seja melhor conjugar este verbo no presente do indicativo) para a formação da minha personalidade. Por isso, as notas que seguem estão esparsas e aparentemente desconexas. São ocasiões em que vejo ‘os passos de Deus em minha vida’ (a expressão, se não me engano, é de Julien Green).

Antes, uma advertência do prof. Olavo de Carvalho: “Eu repenso a minha vida e vejo emoções que eu tive quando era criança e que de algum modo ainda estão presentes. Porém eu tenho que reequacioná-las à luz do que eu sei agora. (…) O sujeito que recorda a sua vida, e conta o acontecimento da sua infância tal como ele o vê agora não o está deformando! Isso porque aquele acontecimento não é uma coisa isolada no tempo, feita para ficar congelada eternamente do jeito que era, mas feita para ser transformada pela memória e pela razão posteriormente. Portanto, essa elaboração posterior que o indivíduo empreende faz parte virtualmente daquilo que aconteceu antes” (Aula 219 do Curso Online de Filosofia).

Aqui vão os registros de algumas das minhas experiências com a verdade, com a beleza e com a bondade.

1. A bondade me apareceu, pela primeira vez, através dos cuidados da minha mãe. Fui um bebê que recebeu muita atenção de muitas pessoas. Os cuidados que minha mãe tinha com minha alimentação e com meu bem estar físico foram, segundo opinião unânime de todas as testemunhas idôneas, um pouco excessivos, mas foram sempre os cuidados de minha mãe e provavelmente ficaram impressos em minha alma como uma garantia de que este mundo é um lugar bom de se viver.

2. Acredito que meu primeiro contato com a beleza foi no colo da minha mãe, tomando leite e olhando para o seu rosto. Não há palavras para descrever o papel que esse contato com a mãe, na amamentação, tem para o desenvolvimento da pessoa. A criança parece saber disso (o choro é uma forma de simbolizar a privação desse bem que por muito tempo representa para ela o Bem Supremo).

3. Também havia beleza, aí já então relativamente sujeita ao meu senso estético, nos brinquedos de que minha infância foi repleta. Gostava muito dos ‘toquinhos’, pequenos cortes de madeira, coloridos e em variados formatos e tamanhos, com os quais eu construía casas, castelos e carrinhos.

4. O Conjunto IAPI, onde passei minha infância inteira, não era certamente uma das sete maravilhas de Belo Horizonte. Mas a imponência dos nove edifícios, dispostos em semicírculo, deve ter me marcado profundamente como obra do ser humano. Além disso, a disposição dos edifícios e suas adjacências estimulavam por si sós uma cosmovisão muito adequada. Vejam se não tenho razão. No centro dos nove edifícios dispostos em semicírculo havia cinco quadras de esporte, a Escola Municipal Honorina de Barros e dois bares. A igreja da Paróquia de São Cristóvão ficava próxima da entrada (na parte interna); também próxima da entrada (porém na parte externa), havia uma delegacia de polícia. Tangenciando o conjunto ficava a Avenida Presidente Antônio Carlos, que nos levava para o centro da cidade e para a Pampulha (onde íamos ver a lagoa e o os jogos no Mineirão). Do outro lado, havia o Hospital Municipal Odilon Behrens e a grande favela da Pedreira Prado Lopes. Enfim, praticamente todos elementos da vida humana estavam ali representados e apresentados aos meus olhos e ouvidos curiosos.

5. Além disso, o Conjunto IAPI é uma questão matemática muito complexa, e portanto fértil, para a cabeça de uma criança curiosa: cada um dos nove edifícios do IAPI tinha, em cada andar, dezesseis apartamentos, separados em quatro conjuntos de quatro unidades em cada uma de suas quatro extremidades; ou, sob outro ponto de vista, em oito conjuntos de dois apartamentos. Cada um desses oito conjuntos possuía um espaço comum próximo da porta de entrada das duas unidades. Geralmente os moradores de cada um dos dois apartamentos próximos combinavam de colocar um portão comum; quando não havia portão, a área ficava aberta. Em muitas dessas varandas viam-se vasos de plantas, que alegravam o ambiente dentro de um edifício vocacionado mais à utilidade que à beleza estética. O Edifício X, em que morei na minha infância, por exemplo, tinha nove andares; o VIII, oito; o IX, em que minha mãe morou na adolescência, nove. Eu nunca entendi por que não havia uniformidade no número de andares de cada edifício (hoje imagino que possam ter sido construídos de acordo com as unidades já compradas ou, pura e simplesmente, ‘faltou cimento’ para completá-los conforme o projeto original). Não havia nem uniformidade e, para meu desespero, nem mesmo um padrão aparente. Talvez meus estudos de pitagorismo cheguem, um dia, a esclarecer esse mistério, que pode se exposto, apenas parcialmente, assim: se o Edifício IX tinha nove andares e se o Edifício VIII tinha oito por que o Edifício X não tinha dez? E por trás desses inúmeros mistérios, havia muita gente de carne e osso. Peguemos, por exemplo, o Edifício X. Nove andares vezes dezesseis apartamentos por andar: 144 apartamentos apenas em um edifício, que era um dos nove (alguns poderão perguntar, aqui, como é possível existir um Edifício X em um conjunto de nove edifícios). Com tanta gente e pouco espaço, os mistérios pitagóricos estimulavam iniciações e uma variada ordem de exercícios contemplativos.

6. O conhecimento me apareceu pela primeira vez como uma coisa boa quando algumas vezes vi meu pai estudando em uma mesa que ficava no quarto dos fundos de nosso apartamento no Conjunto IAPI. Tenho a impressão de que minha mãe cuidava para que ele não fosse incomodado (provavelmente estudava para as provas da faculdade). Os momentos de estudo de meu pai eram então momentos solitários nos quais eu vislumbrava uma ligeira tensão. Nunca vi meu pai conversando com alguém sobre suas leituras. Nunca presenciei em casa discussões intelectuais (só mais tarde as tive com ele, quando já eu mesmo, matriculado na Faculdade de Direito, me iniciava nos rudimentos de Direito Penal).

7. A verdade me apareceu em estado bruto, chamando para seu reino augusto, diante da estante de livros do meu pai. Nela havia livros jurídicos (Curso de Direito Penal do Damásio de Jesus, cursos de Direito Civil do Clóvis Beviláqua e do Caio Mário da Silva Pereira etc), os autos da Inconfidência Mineira, uma enciclopédia universal em dez volumes de cor azul chamada Panorama, uma coleção de livros de receita, de cor rosa, algumas edições do Círculo do Livro e duas coleções de literatura, com capa dura, que meu padrinho de batismo certa vez apareceu vendendo para ganhar um troco: uma delas era a coleção completa, até então, das obras de Jorge Amado (na lombada havia um retângulo vermelho com o nome do autor e da obra); a outra, com detalhes em cor verde, em aproximadamente vinte volumes, de grandes nomes da literatura universal, incluindo a brasileira (nela havia basicamente obras de Alexandre Dumas pai, Eça de Queiroz e de José de Alencar). Esses livros nunca me foram acessíveis, em sua forma plena, antes dos doze anos. Porém há pouco tempo tive a oportunidade de abrir um deles e tive a certeza absoluta, tão certo como o Sol nasceu hoje, de que as figuras daquele livro (era o primeiro volume de ‘Os Três Mosqueteiros’) foram parte importante do início da minha segunda infância. Quando meu pai não estava em casa eram seus livros que o representavam. Eram o símbolo de ligação entre mim e ele. Se foram uma representação adequada ou se deixaram marcas na minha vida afetiva é questão que o tempo cuidará de responder se Deus assim quiser.

(…)

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”(…) A pior maneira de se estudar filosofia é tomar certas questões gerais que você chama de ´problemas filosóficos´e colocá-las na cabeça do aluno. Por exemplo: Existe o mundo exterior? Podemos conhecer a ´coisa em si´? Assim você começará a partir de formulações já muito elaboradas e não da experiência originária. O problema filosófico apresentado tem de lhe mostrar suas credenciais. Primeiro ele tem de provar que ele é um problema de verdade, e não um erro de linguagem. Em segundo lugar, ele tem de provar que ele é importante, que ele é vital, e principalmente que ele é vital para você na sua situação existencial real. [Como estamos buscando] o verdadeiro ensino da filosofia, no…

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