fbpx

Os físicos de Mileto

Tal como a conhecemos hoje a Filosofia é filha da Grécia. Grande parte das introduções à Filosofia e dos cursos de Filosofia começam, naturalmente, tratando dos chamados jônicos. É natural que o iniciante se espante diante da afirmação de que a Filosofia começou com Tales de Mileto, no século VI a.C.. Por que nos espantamos? Ora, como a Filosofia, essa coisa tão interessante, pode ter começado com a hipótese de que “o princípio material de todas as coisas é a água”?

Eu já me perguntei (e também a alguns professores) o que é que Tales queria dizer com isso. As respostas foram insatisfatórias. Eu continuava sem entender. Eu, que tento levar a Filosofia a sério, não podia começar seu estudo com esse grande enigma. Do que Tales estava falando?

Depois de ter lido um bocado — e meditado outro tanto — as respostas começam a aparecer. A noção de cosmos, para os gregos, é muito importante. O mundo nos aparece ordenado, sujeito a uma lei. Cosmos traz a ideia de totalidade, unidade. Uma coisa intrigava os gregos: os opostos — dia e noite, frio e calor. A pergunta que provavelmente deu início às especulações jônicas foram essas: para além da diversidade de todas as coisas há uma base comum? Em outras palavras, há algo que é tão frio e tão quente quanto o são o frio e o quente? Há algo que seja a origem tanto do dia quanto da noite?

A resposta dos jônicos foi sim. Sim, existe. Essa resposta preliminar determinou a busca que deveria ser empreendida: o que há de permanente no fluxo das coisas? A concepção dos três filósofos jônicos sobre o que é essa base comum (e, portanto, também a origem dos fenômenos) são diferentes. A propósito, arché, ou princípio, é um termo que, segundo John Burnet, é aristotélico. Os milésios falavam em physis — como aquilo, de natureza permanente, de que é feito o mundo.

Para Tales de Mileto, o princípio material de todas as coisas é a água. O que quer dizer isso? Que as coisas são meras manifestações concretas desse princípio único; que tudo é um tipo de água (ou um caso do princípio-água).

Gostaria de entender melhor o que ele quis dizer com isso e de onde tirou essa sua hipótese de trabalho. Os historiadores da Filosofia também gostariam — embora eles façam conjeturas mais ou menos aceitáveis sobre e origem e o fundamento das ideias de Tales, que nos chegaram indiretamente por comentaristas antigos.

A contribuição de Anaximandro é um pouco mais trabalhada. Para ele o princípio de tudo é o indeterminado, o ilimitado, o chamado ápeiron. A origem de tudo é um negócio magnânimo, que provoca assombro! Segundo ele, as coisas são engrendradas por uma segregação. Ocorre que isso é uma injustiça (adikía), um predomínio de um contrário sobre o outro. Por isso há o predomínio de coisas individuais, que sempre sinalizam um dos opostos. A predominância de um ou outro dos opostos é uma “injustiça”, pela qual eles devem dar reparação ao outro, no devido tempo. Há necessidade de que tudo volte ao seu fundamento último: o ápeiron, onde os contrários não se tiranizam. Isso ocorrerá através do tempo. O tempo é a forma desse acontecer, desse retorno. O ápeiron é “sempre novo e imortal”.

O ápeiron, o infinito, é algo diferente dos elementos. Nesse ponto, a sacada dele já é um passo a mais em relação à concepção de Tales: pois como a água pode ser o princípio de todas as coisas se ela é uma das coisas?

O terceiro jônico é Anaxímenes. Para ele o princípio de tudo é o ar, de onde nascem as coisas e para onde voltarão quando se corromperem. O modo concreto de formação das coisas é a condensação e a rarefação. À substância primeira, suporte da diversidade, em constante mutação, das coisas, o ar acrescenta um princípio de movimento. Se o ar é rarefeiro, o princípio de movimento que ele acrescentará engrendrará o fogo; se o ar é condensado, o princípio fará nascer nuvens, água, terra, rocha, tudo segundo o grau de densidade.

Anaxímenes salvou a unidade da substância primordial ao dizer que todas as diversidades se devem à presença de maior ou menor quantidade dela em um determinado espaço. Com isso já não é preciso fazer da substância primordial algo distinto dos elementos. O princípio de todas as coisas está… em todas as coisas, materialmente.

O mundo de Anaximandro é resultado de uma divisão no seio do ápeiron (as coisas têm um débito com sua origem, são capengas, são apenas uma face da moeda); o mundo de Anaxímenes é fruto da participação da substância primordial na essência das coisas mesmas, em variados estados de rarefação e condensação. O princípio de tudo desce e entra no jogo da diversidade. Teria nascido no seio da escola jônica, entre Anaximandro e Anaxímenes, a primeira disputa entre idealistas e realistas?

Related Articles

Questões em torno dos filósofos milesianos

Da segunda aula do Curso de História da Filosofia ministrado pelo Prof. Eduardo Dipp no extinto Instituto Olavo de Carvalho extraí as seguintes questões relevantes, que, entre tantas outras, um estudioso da Filosofia Antiga deve ser minimamente capaz de articular.

– Houve transmissão de ensinamentos dos egípcios ou dos babilônicos aos primeiros filósofos gregos? Quais? De que maneira?
– Como o então crescente desprestígio da religião grega influenciou o surgimento da Filosofia?
– Como os séculos de ‘calmaria internacional’ e a organização política grega influenciaram o surgimento da Filosofia?
– Como a sabedoria era preservada socialmente antes dos primeiros filósofos? Como passou a sê-lo depois?
– Os pré-socráticos são proto-filósofos? Que conclusões resultam dessa concepção?
– Como Homero e Hesíodo influenciaram os filósofos gregos?
– Como o teatro grego influenciou os primeiros filósofos?
– Como se mesclam na filosofia de Anaximandro a cosmologia e a ética? Como a questão dos limites e a hybris se relacionam aí?
-…

Como Sócrates recebeu as doutrinas dos ‘filósofos físicos’

Porque a filosofia de Sócrates não foge à regra, pode então ser expressa pela fórmula clássica A não é B, mas C. Isso quer dizer que as filosofias não nascem do nada, mas sim do confronto com as filosofias ou com as concepções de mundo que vieram antes.

E antes de Sócrates vieram, por definição, os pré-socráticos. Os primeiros deles são geralmente chamados de filósofos físicos — que eram uma mistura de cientistas e ascetas que refletiam sobre a natureza e sobre o fundamento de tudo o que existe. Perguntavam-se como tudo começou e qual é a razão de unidade de todas as coisas — ou seja, qual é a unidade por trás da multiplicidade de tudo quanto há. Tales de Mileto, o primeiro dos pré-socráticos, era conhecido como um dos Sete Sábios. Para esses cientistas ascetas a sabedoria era a posse da verdade sobre a natureza — natureza que há de ter estrutura…

Pitágoras e os assim chamados pitagóricos

Em torno de Pitágoras há um misto peculiar de genialidade científica e de ascetismo. Gênio rigoroso, líder de uma sociedade secreta ou um intelectual com pretensões políticas? Pitágoras é, definitivamente, um homem em torno do qual há muitas controvérsias.

Suas influência política talvez decorra naturalmente de sua capacidade especulativa e de seu provável magnetismo pessoal. Não nos importa tanto entrar nessa questão. Basta dizer que sua ideia de dar asilo político a refugiados estrangeiros custou a antipatia do governo de Crotona, na Itália, que de lá os expulsou violentamente.

Os relatos sobre a vida de Pitágoras são uma colcha de retalhos. Historiadores antigos, discípulos, biógrafos, todos eles são utilizados hoje pelos historiadores da Filosofia em busca de montar esse complicado quebra-cabeças que é o seu perfil pessoal e a generalidade de sua doutrina. É provável que tenha feito um intercâmbio intelectual através de viagem ao Egito. Comenta-se que foi o primeiro…

Os três ou quatro “pensadores” brasileiros

Penso o seguinte em relação aos três pensadores brasileiros “de massa” do momento:

i) Cortella: nunca consegui acompanhar um raciocínio completo dele. Não ouvi e não gostei.

ii) Karnal: já gostei de ouvi-lo, mas aos poucos vi que ele não tem honestidade intelectual (seus comentários toscos e rasos sobre o Escola sem Partido e o “nunca li um livro de Olavo de Carvalho” sepultaram o pequeno interesse que eu tinha por acompanhá-lo); além disso, e talvez por isso, o tom de sua fala começou a me cansar;

iii) Clóvis de Barros: me parece, dos três, o mais preparado para a função de “professor de filosofia de colégio”; não se leva muito a sério e parece ter a consciência de que sua função pública é “animar” turmas que por princípio não se interessam por filosofia; há indícios de que sabe alguma coisa (ainda que seja alguma coisa de almanaque) sobre alguns poucos filósofos…

Responses