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Considerações a respeito da loucura e da eternidade

A imaginação não gera a insanidade. O que gera a insanidade é exatamente a razão. Os poetas não enlouquecem; mas os jogadores de xadrez sim. (…) O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo exceto a razão” (G. K. Chesterton, em Ortodoxia)

Eu conheci a Ana Elisa Ribeiro em 2003. Ela era então uma perversa escritora de poemas ácidos e tinha um blog chamado Estante de Livros, no qual eu batia o ponto todos os dias. Somente pessoas especiais e literariamente engajadas tinham audácia suficiente para escrever um blog no ano de 2003. A Ana não usava letras maiúsculas, gostava de Paulo Leminski e morava no bairro Santa Teresa, em Belo Horizonte: três motivos que eu até então reputava suficientes para chamar alguém para tomar um café comigo. Com a Ana Elisa eu aprendi que escrever ajuda a gente a não enlouquecer; ou a enlouquecer por escrito – o que é mais interessante e dá menos prejuízo.

Em um desses cafés com rock ´n roll a Ana me apresentou um vizinho seu. – Um cara bacana, ela disse. – É assessor de um juiz no Tribunal de Justiça e guitarrista de uma banda cover do Jimi Hendrix, que vai se apresentar hoje à noite no Barro Preto. Bora?

Naquela época minhas duas guitarras já estavam precoce e irrevogavelmente aposentadas. Eu resisti muito em aplicar ao meu caso, com verdadeira resignação, a decisão pessoal do meu amigo Daniel Viana: – Eu não toco mais violão; para ser bom na coisa você tem que se dedicar muito; e eu não tenho nem jeito nem paciência para isso…

Alguns, porém, sempre resistem um pouco mais. Que seria do mundo sem eles? Se pirar por escrito pode ser uma boa ideia, pirar tocando Jimi Hendrix há de ter lá suas vantagens. Verdadeiro fim de festa, símbolo da decadência e atestado de loucura clínica é pirar redigindo despachos no computador do Tribunal de Justiça. Desses aí — sejamos sinceros! — até os mais empedernidos corações terão compaixão.

Por isso, para não enlouquecer no Tribunal de Justiça, o amigo da Ana Elisa não largou a guitarra. É certo que ele vinha enfrentando determinada dificuldade na área jurídica – não me lembro qual. Com exceção da possível crise pessoal crônica irradiadora de maus fluídos e de causa indefinida que costuma assolar os assim chamados gênios incompreendidos, os problemas dessa ordem, na vida do estudante de Direito, costumam ser de três espécies: i) ele está frequentando a Faculdade de Direito para agradar aos pais, embora pessoalmente não tenha vocação para a área; ii) está trabalhando mais de oito horas por dia e com isso não lhe sobra tempo para estudar; ou iii) apesar de estar estudando, não alcança, nos diversos concursos públicos que presta, resultados minimamente compatíveis com o investimento que faz e com as renúncias que já lhe começam a custar algumas lágrimas — fase, aliás, boa para compreender, com bons frutos, que bençãos e desgraças vêm sempre no horário.

– Então, bora?

Bora

Na penumbra de um dos cômodos de uma casa transformada em bar, no Barro Preto, me vi observando a banda que se preparava para começar a apresentação. Naquele bar destinado a ter vida breve, eu usufruía, feliz, da curta amizade com a poeta de sobrancelhas grossas, a Frida Kahlo das letras belohorizontinas. Eu não conhecia de memória nenhuma música do Jimi Hendrix, com exceção de Hey Joe. Estávamos no inverno de 2003. No final do ano eu tomaria posse como promotor de justiça. Naquela salinha escura, as pessoas de pé olhavam a banda terminar a preparação dos instrumentos. Um pouco à minha direita, lá no fundo, próximo da bateria, o amigo da Ana Elisa conferia a afinação da guitarra. Havia solenidade nos gestos: parecia que nos preparávamos para a eternidade. Aos poucos, um silêncio tenso calou as últimas vozes próximas. Lá fora, ninguém passava na rua. Nem um bêbado. No lugar do costumeiro compasso dado pelas baquetas do baterista, foi o instrumento de Jimi Hendrix, claro, quem deu início à noite.

Rompendo o silêncio, a guitarra lamentou durante trinta segundos, absolutamente sozinha, os primeiros acordes de Little Wing, que se conformavam, como o acidente em seu sujeito, com a imagem daquele jovem em crise a extraí-los do instrumento com a força própria dos que resistem com bravura. Diante daquele cara da minha idade, que tocava a guitarra com os olhos fechados e com a cabeça inclinada para a frente, eu vivi extasiado a experiência mais sublime daquele ano repleto de surpresas e de boas notícias. No centro do palco, aquela belíssima peça não era a mera obra do indivíduo fortuitamente escalado para executá-la naquela noite tão cheia de significados: tudo aquilo, refletindo no silêncio da audiência em comunhão, era o sintoma de uma geração perdida – riding with the wind, walking through the clouds.

Alheio às perdições da época, no brevíssimo tempo em que a poucos metros de mim a guitarra reinou só naquele quarto improvisado e mal-decorado eu experimentava a dimensão da existência a que chamamos eternidade.

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Numa certa época, eu evitava comprar em lojas especializadas em ternos para gente que vai na formatura de parente. Não me caíam bem. Por outro lado, não tinha dinheiro suficiente para entrar em lojas de grife. Por isso dei graças a Deus quando conheci um alfaiate em Belo Horizonte, um senhor experiente e muito caprichoso, que fez praticamente todos os ternos que usei nos primeiros anos da Promotoria de Justiça.

Esse alfaiate só tinha um defeito (grave defeito): ele nunca cumpria prazos. O pobre coitado tinha problema com alcoolismo. Isso imprimia no seu trabalho um ritmo muito próprio — não porque fosse preguiçoso, mas porque, profundo conhecedor de sua própria alma, sabia que não podia ter muito dinheiro no bolso (no caminho da oficina há um bar em cada esquina). Assim, as paredes de sua salinha de trabalho eram compostas pelas encomendas que ele ia estrategicamente acumulando como quem empenha…

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Assistimos, todos os dias, no noticiário, em colunas de jornal, em blogs, a uma grande variedade de opiniões sobre os mais variados temas. A discussão entre duas correntes de pensamento – às vezes entre três ou quatro – é um lugar comum na nossa vida nacional dita civilizada. Algumas dessas discussões chegam praticamente às vias de fato virtuais – nova modalidade de briga de gangues que, bem ao gosto moderno, não deixa feridos e não termina (ou não costuma terminar) na delegacia.A pergunta que muitos frequentemente levantam é: será que essas pessoas, que defendem determinados pontos de vista que julgamos nocivos à vida social, estão contribuindo conscientemente para o mal? Um defensor, por exemplo, da liberalização irrestrita do uso de drogas ou da livre prática do aborto tem consciência do que está fazendo? Em geral a resposta é não. Pelo menos não completamente. É impossível que todos os soldados…

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