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Aqueles pedaços de pano pendurados…

Numa certa época, eu evitava comprar em lojas especializadas em ternos para gente que vai na formatura de parente. Não me caíam bem. Por outro lado, não tinha dinheiro suficiente para entrar em lojas de grife. Por isso dei graças a Deus quando conheci um alfaiate em Belo Horizonte, um senhor experiente e muito caprichoso, que fez praticamente todos os ternos que usei nos primeiros anos da Promotoria de Justiça.

Esse alfaiate só tinha um defeito (grave defeito): ele nunca cumpria prazos. O pobre coitado tinha problema com alcoolismo. Isso imprimia no seu trabalho um ritmo muito próprio — não porque fosse preguiçoso, mas porque, profundo conhecedor de sua própria alma, sabia que não podia ter muito dinheiro no bolso (no caminho da oficina há um bar em cada esquina). Assim, as paredes de sua salinha de trabalho eram compostas pelas encomendas que ele ia estrategicamente acumulando como quem empenha um patrimônio no banco. A impressão que tenho hoje é a de que ele ia concluindo as peças na medida (e somente na medida) em que precisava do dinheiro para suas necessidades básicas.

No tempo em que eu fui seu cliente, as paredes de sua sala sempre tinham um ou dois ternos meus, em fase de costura, e outras tantas peças de outros tantos clientes mais ou menos impacientes como eu. Aqueles pedaços de pano pendurados em pregos (pregos velhos, da época de seu pai, de quem herdou o ofício) davam-lhe segurança em relação ao futuro; e lhe lembravam que a sua vida só podia ser vivida com a disciplina rígida dos monges.

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Alguns anos depois que deixei a Promotoria

Alguns anos depois que deixei a Promotoria de Águas Formosas, MG, o prefeito que pontificou durante boa parte de minha passagem por lá foi à rádio da cidade dar uma entrevista. Lá pelas tantas, ele, lembrando-se da época em que governara o município, fez uma referência um tanto desonrosa a mim. O jornalista lhe perguntou a respeito dos processos que ele ainda respondia na Justiça por conta de suspeitas de malversação de dinheiro público. Como não quisesse entrar no mérito das acusações, saiu-se com essa: “Essas ações ainda estão tramitando porque naquela época tinha aqui na cidade um promotorzinho que pegava no meu pé etc”.

Querendo ver o circo pegar fogo, alguém chegou a me enviar um CD com a entrevista, para que eu, se fosse o caso, interpelasse o falastrão por conta dessa menção desrespeitosa.

Enquanto tinha a correspondência nas mãos e apertava o CD com os dedos, o rosto…

Para que serve (se é que serve) a cultura literária?

É verdade que os escritores em geral resistem em atribuir alguma utilidade à literatura. Para eles, a literatura não deve ter nenhuma serventia. E nisso estaria precisamente um de seus mais relevantes objetivos: a literatura existe para indicar que nem tudo na vida está aí para preencher determinada função na engrenagem social. Numa época tão excessivamente funcionalista como é a nossa, a literatura seria, então, o espaço livre fora da fábrica, em que os operários podem respirar ar puro — esquecidos de sua condição de mera peça de uma indústria de pregos e parafusos.
Porém, se bem que muitos tratem a literatura de ficção como passatempo ou diversão (ainda que uma diversão necessária), é evidente que ela responde a inquietações humanas muito sérias e profundas. E isso é assim porque a literatura de ficção é parte da cultura; é parte da herança que recebemos como participantes de uma determinada civilização. Quem quer que pretenda…

Quem quer mudar o mundo?

Em um dos meus últimos artigos (“Direita e esquerda”), pretendendo indicar que a complexidade da vida não comportava uma posição unívoca em relação à modalidade de participação do Estado na vida social, acabei dizendo que eu era ao mesmo tempo conservador e progressista. Com isso corri o risco de ter dito muito sem, na realidade, dizer nada. Vejo, então, que preciso me explicar.

A conservação e a renovação da vida (e, portanto, das ideias e dos costumes) são duas realidades das quais não podemos escapar. A saúde de uma nação depende do equilíbrio entre essas duas funções. Por circunstâncias diversas, ocorre que em determinadas épocas a visão conservadora ou a progressista toma conta do imaginário social e passa a dominar os discursos. Com o tempo, a hegemonia de uma visão a torna onipresente. Se não há dinamismo suficiente para que ela seja renovada à luz das circunstâncias novas de cada dia, ela…

Estamos indo sempre para casa (Raduan Nassar)

“Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse ‘para onde estamos indo?’ — não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’.”

(Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica)

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