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Os “privilégios” das carreiras jurídicas no Brasil

Eu sou procurador da República. Desde o início da minha vida profissional, praticamente todo o dinheiro que recebi, para o meu sustento e o da minha família, veio do trabalho que fiz em posições que alcancei depois de concorrer com outras pessoas em concursos públicos. Se tivesse optado pela iniciativa privada, provavelmente não receberia um salário tão bom e não teria direito a sessenta dias de férias por ano. Porém, eu fiz algumas escolhas: ainda na faculdade, optei por tentar o concurso de promotor de justiça; e o tentaria outras mil vezes mesmo que o salário fosse três vezes menor.

Eu não estou no Ministério Público em razão do salário ou das férias em dobro. Eu estou aqui porque descobri, no final da adolescência, que a ordenação das coisas é o princípio da felicidade; e que a profissão que me permitiria ordenar as coisas segundo minha personalidade – meio marciana, meio quixotesca – era representada, nesta quadra da história, por aquilo que atende pelo nome de Ministério Público.

Se essa profissão me permite ter uma vida confortável, ótimo. Mas eu não ganho sozinho: os bons salários que a magistratura e o Ministério Público recebem hoje lhes garantem um quadro de profissionais com qualidade técnica bem acima da média nacional. A sociedade também ganha com isso, evidentemente; não só ganha como paga para ganhar, e por isso deve cobrar um resultado que, hoje, está um pouco abaixo da capacidade dos profissionais que remunera.

Os salários que os juízes e os promotores de justiça/procuradores da República recebem hoje me parecem razoáveis. Se na minha opinião poderiam, sem injustiça, ser um pouco menores, não há fundamento para que se os qualifique de injustos privilégios. Definitivamente, não; não são privilégios.

Eu poderia tentar desqualificar os críticos dizendo que a atividade criminal do Ministério Público, simbolizada e presentificada hoje pela equipe da operação Lava Jato, os tem incomodado ao ponto do insuportável; ou dizer que essas críticas apelam para o nosso natural sentimento de inveja.

Não será necessário ir tão longe.

Bastará identificar a origem do discurso contra os “privilégios”, que chegou em seu maior momento na França revolucionária: esse discurso está em nosso imaginário por conta do modo de vida da aristocracia que em outros tempos conservava suas vantagens pessoais e familiares e as transmitia às novas gerações por direito hereditário (esquecemo-nos, entretanto, que a aristocracia era responsável pela segurança interna e pela paz contra os inimigos estrangeiros – eram os aristocratas, e não a plebe, que morriam nas batalhas). As críticas aos “privilégios” dos servidores públicos de alta patente hoje nos trata como se representássemos, com fidelidade, a figura do aristocrata medieval.

Mas não é assim.

É verdade que os juízes e os promotores de justiça/procuradores da República conservam alguns traços da aristocracia: sua qualificação intelectual está bem acima da média e a retribuição que recebem pelo trabalho, idem. O ponto é que não há direito hereditário envolvido aqui. Os concursos para ingresso na magistratura e no Ministério Público costumam ser os mais democráticos do país. Quem quer concorrer concorre; e vencem os que, conforme a metodologia da seleção, melhor dominarem o conteúdo programático.

A quem imagina que a seleção desses concursos privilegia os mais ricos, que estudaram em melhores instituições de ensino, convido a conhecer a história de muitos candidatos aprovados: boa parte dos juízes e dos membros do Ministério Público na ativa hoje alcançaram, com a aprovação no concurso, uma situação financeira muito mais confortável que a de seus pais e de seus avós. A maior parte desses profissionais, que são hoje a elite econômica do funcionalismo público, é composta de egressos da classe média “média”; e muitos vieram da classe média baixa. O número dos que tiveram pais “ricos” talvez seja próximo ao número daqueles que tiveram pais “pobres”.

Só é possível falar em privilégios dos servidores públicos se os eventuais benefícios da carreira foram aumentados desarrazoadamente através de negociações feitas na surdina, como numa troca de favores. Não é isso o que acontece com o salário da maioria dos ministérios públicos do país. Por isso, eu não tenho nenhuma vergonha de receber o salário que recebo – e a quem critica os supostos privilégios do cargo de procurador da República eu lembro que o acesso ao nosso concurso — cuja aprovação provavelmente o encaminhará a alguma abençoada e longínqua trincheira de algum Estado da região Norte do país — é livre a qualquer cidadão brasileiro com graduação em Direito.

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Responses

  1. Olá, Bruno. Leio os seus artigos e as vezes compartilho no meu facebook, mas quando as pessoas clicam para acessar o conteúdo o antivírus “grita” ou dá erro. Pensam que é alguma sacanagem. rs.. Porquê isso acontece?

  2. Hoje em dia o servidor público é marginalizado, graças a ignorância das pessoas e os libertários que são os “alfas” da economia que falam merda. Dizem que damos prejuízo, porém pergunto sempre: político dá lucro?

    Sou servidor público municipal da Prefeitura de Sp e sempre ouvi dizer que funcionário publico não trabalha. Pelo menos comigo não é assim, é pauleira o tempo todo

  3. Entrei no seu blog por conta de Platão, vi esse artigo e me interessei, mas estou agora ultrajado com o que li.

    Você não disse nada que torne legítimo os altos salários do judiciário. Eu não posso contar com a justiça, é normal, diante de alguma ilegalidade ouvir “bota na justiça”, pois a ineficiência e morosidade do sistema é conhecida de todos. Enfim, é muito difícil justificar os altos salários, não existe almoço de graça e a contribuição de vocês à sociedade é risível, o mais adequado seria cortar os subsídios em consonância com a qualidade do serviço.

    Além disso, chamar estes concursos de democráticos é o fim da picada. O Brasil é a terra dos bacharéis em direito, será porque aqui nesta terra temos uma genética apropriada à defesa dos direitos?

    Claro que não, é por conta destes privilégios, os quais suportam uma burocracia maçante que só serve à manutenção de estruturas que comportam burocratas que, a rigor, nem deveriam existir. Por que quem estuda biologia, psicologia, serviço social, ou qualquer outra carreira de suma importância para a sociedade, não merece ter as mesmas oportunidades no serviço público que um bacharel em direito?

    Agora por que você acha que merece ganhar mais que um professor? Por que você considera que seu trabalho vale mais do que os demais? E francamente, impressionante como você não se sente mal em ganhar seu salário mais subsídios e regalias imorais em um país onde a maioria da população (92%) não ganha nem o seu auxílio-moradia, é de um egoísmo ultrajante.

    Lamento pela existência deste judiciário ineficiente, que não contribui para produzir riqueza (pois segurança e justiça não há, a começar pela injustiça de vossos salários), e vivem às custas do trabalho de um povo miserável.

    Não existe almoço de graça, funcionários públicos do alto escalão estão roubando dinheiro público em uma prática de corrupção institucionalizada. Todo poder emana do povo e a legitimidade da função e salário de cada carreira também. Pois bem, veja qualquer pesquisa, ou pergunte o senhor mesmo, acerca da aprovação das regalias desta classe e tire suas conclusões. Somos obrigados a pagar uma conta imoral.