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Aqueles que falaram a respeito de Sócrates

Preciso falar duas palavras sobre as fontes de acesso a Sócrates. Como ele nunca escreveu uma linha sequer, tudo o que sabemos a seu respeito nos chegou através de terceiros. Se foram fiéis ao chamado Sócrates histórico é questão controversa.

Há basicamente quatro boas fontes para ter acesso à vida e aos ensinamentos de Sócrates: Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles. Sem dúvida, quem nos pintou o retrato mais belo de Sócrates foi Platão. Aristófanes, em sua comédia As Nuvens, retratou um Sócrates jovem, meio sofista, e o fez alvo de zombarias. Parece que foi uma caricatura do primeiro Sócrates. Xenofonte, nos Memoráveis (Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates) e em alguns diálogos menores, descreveu um Sócrates excessivamente preocupado com questões morais – como dizem, o Sócrates de Xenofonte é inofensivo demais e certamente não seria condenado pelo Tribunal ateniense. Logo, trata-se de uma imagem parcial. Além disso, quando Xenofonte escreveu seus livros parece que não via Sócrates há muitos anos. Ou seja, ele não acompanhou o desenvolvimento posterior do mestre. Aristóteles não conheceu Sócrates pessoalmente. Tudo o que ele sabe a seu respeito veio dos diálogos platônicos e muito provavelmente dos testemunhos diretos de Platão.

É Platão quem nos apresenta o Sócrates que conhecemos, irônico, sagaz, provocador, meio místico e muito corajoso. É verdade que não é possível dizer exatamente onde termina o Sócrates histórico e começa o Sócrates idealizado por Platão. A escola escocesa (A. E. Taylor e John Burnet) acredita que Platão foi um historiador fiel de Sócrates. Outros comentadores relativizam o testemunho de Platão e dizem que ele idealizou demais Sócrates e colocou em sua boca as teorias que ele próprio concebeu. Entre os últimos está Copleston, que lembra o testemunho de Aristóteles: Sócrates não distinguiu as formas — que, portanto, seriam criação de Platão. Ora, nos diálogos platônicos Sócrates discorre sobre as formas. Logo, o Sócrates platônico não seria um retrato fiel do mestre.

Apesar disso, Aristóteles, em sua Metafísica, reconhece e distingue o legado de Sócrates. Segundo ele, duas coisas se podem com justiça atribuir a Sócrates: o discurso indutivo e a definição geral, que são o ponto de partida da ciência. Contudo, muitos resistem em reconhecer Sócrates como criador do conceito (por exemplo, Xavier Zubiri). Outros comentadores, como Giovanni Reale, duvidam desse testemunho aristotélico, como se o mestre, nesse particular, não fizesse questão de ser preciso. Seja como for, o que temos de seguro é que Sócrates criou um método de pesquisa que foi aperfeiçoado por Platão. É isso o que temos. A linha divisória entre um e outro é difícil de traçar. Provavelmente se pedíssemos a ambos que esclarecessem a questão eles balançariam a cabeça, achariam graça na pergunta e responderiam, lacônicos: entre os amigos tudo é comum.

Como o meu interesse específico é o aprofundamento e a compreensão plena da filosofia platônica, em direção à filosofia de Aristóteles (e mais além), deixo para os eruditos essa tormentosa questão de saber precisamente quem inventou o quê, até onde Sócrates foi e em que ponto entregou o bastão para Platão. Minha ocupação é justamente com a natureza desse bastão — e não com o momento em que ele foi entregue a Platão. Sigamos.

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“Este é talvez, de todos os diálogos platônicos, o que torna a Atenas de Sócrates e de Platão aparentemente mais distante de nós. Nós somos conduzidos de volta a um tempo em que a linguagem havia começado a ter grande importância em si mesma e em que os raciocínios eram geralmente expostos oralmente. Um trocadilho ou um duplo significado podia decidir uma importante discussão. Aqui Sócrates enfrenta Eutidemo e seu irmão, ambos assim chamados erísticos, ou contendores das palavras, e na sua batalha com Sócrates, que diz ser apenas um de seus alunos, esse tipo de artifício ocorre com frequência e se torna extremamente cansativo. Por exemplo, quando Sócrates pergunta pelo sentido de uma frase usada por Dionisiodoro, em resposta ele lhe diz: ‘Há alma nas coisas que têm sentido, quando elas têm sentido? Ou há apenas o sentido das coisas desalmadas?’ Sócrates responde, ‘Apenas as coisas com alma.’…

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Superado este ponto, sigamos. Suspeito que o melhor a fazer não seja começar pelo começo. Deixemos Tales de Mileto para um momento posterior. O melhor, parece-me, é começar por Sócrates, que é considerado o ‘pai da Filosofia’ apesar de não ter deixado obra escrita. Depois de compreender relativamente bem o que é o projeto socrático,…

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i) Sócrates faz inusitadas, se bem que breves, análises psicológicas. O texto é um relato feito por Sócrates da curta conversa que teve com Crítias e Cármides. A diferença, aqui, em relação aos demais diálogos platônicos em que certa discussão é relatada por um terceiro é que se trata do próprio Sócrates a narrá-la. Porém, muito além de meramente relatar o diálogo colocando-se, como narrador, em posição de certa invisibilidade (como ocorre em outros diálogos platônicos em que verdadeiramente ‘esquecemos’ do narrador e acompanhamos atentos ao desenrolar da discussão), ocorre aqui algo com que o leitor frequente de Platão não está acostumado: em pelo menos…

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