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Apontamentos sobre a gagueira

Você já identificou algum comportamento, algum hábito, alguma característica de sua personalidade que, desde sua infância, influencia, ou mesmo determina, as linhas gerais de sua existência? É possível que sim. Ou talvez você nunca tenha pensado no assunto. Pense um pouco e verá que há em você alguns comportamentos mais permanentes e, por outro lado, existem hábitos passageiros, sazonais, estados emocionais que vão e que vêm a depender de uma série de circunstâncias que quase nunca estão sob seu controle.

Faltam-me luzes para elaborar uma teoria geral do comportamento humano. Meu objetivo aqui é mais modesto. Falarei sobre uma característica, dentre tantas, que sendo as mais das vezes permanente deixa marcas profundas na vida de muitos de nós. O tema aqui é a gagueira.

As estatísticas registram que aproximadamente 1% das pessoas apresentam alguma forma de gagueira. Segundo o site da Associação Brasileira de Gagueira – Abra Gagueira:

Os sintomas externos produzidos pela gagueira na fala de alguém podem ser listados da seguinte forma:

  • Repetição de sons e sílabas. Exemplos: “A-a-atenda o telefone, por favor” e “Atenda o te-telefone, por favor”. Este é um sintoma da dificuldade de ligar os elementos na fala.

  • Prolongamento de sons. Exemplo: “Atenda o telefone, por ffffavor”. Este é um sintoma da alteração na temporalização da fala.

  • Bloqueio de sons (ocorre quando o som fica “travado”, “preso”). Exemplo: “Atenda o [silêncio de alguns segundos] telefone, por favor”. Este é um sintoma da alteração na temporalização da fala.

  • Ocasionalmente essas disfluências também ocorrem na fala dos falantes fluentes, mas aparecem em menor número, sem tensão ou movimentos associados e, principalmente, são seguidos de pronta recuperação da fluência.

Existem outros comportamentos que podem ser utilizados por uma pessoa que gagueja na tentativa de mascarar a gagueira.

  • Uso de interjeições; como faz parte da fala de todas as pessoas, confere à fala gaguejada um aspecto “mais normal”. Exemplo: “Atenda éh éh éh o telefone, por favor”.

  • Troca de palavras durante a fala; ocorre quando a pessoa que gagueja antecipa um sintoma da gagueira e resolve evitá-lo. No próximo exemplo, vamos supor que antes da pessoa que gagueja falar a palavra “favor”, ela percebe que vai gaguejar e, em uma tentativa de mascarar o sintoma, troca por “obséquio”: “Atenda o telefone, por obséquio”. Vale lembrar que nem sempre as trocas são adequadas, sendo que, em algumas vezes, a fala pode tornar-se antinatural e a comunicação, comprometida.

  • Simplificação de frases; ocorre quando a pessoa que gagueja percebe que vai gaguejar em uma determinada palavra e resolve excluí-la da fala. Exemplos: ao invés de “Atenda o telefone, por favor” dizer “Atenda o telefone”, “Atenda, por favor” ou “O telefone”. Novamente, nem sempre tais simplificações nas frases soam naturais e a comunicação continua comprometida.

  • Movimentos de partes do corpo na tentativa de liberar um som ou uma sílaba que está bloqueada. Exemplo: “Atenda o [bloqueio do t e fechamento dos olhos] telefone, por favor”. Algumas pessoas que gaguejam repetem continuamente movimentos compensatórios durante a fala.

Essas dificuldades fazem parte, com as naturais variações de grau, do dia a dia dos gagos e causam com muita frequência um sofrimento que, se você bobear, passa a fazer parte do pano de fundo de sua existência. Eu sei do que estou falando. Sofro com isso há muito tempo. Essa revelação feita assim, subitamente, certamente surpreenderá muitos dos meus amigos. No começo da minha vida adulta, por exemplo, namorei por quatro anos uma moça com quem tinha aprazíveis, frutíferas e longas conversas sobre uma grande sorte de assuntos. Depois de ter acesso acidental a mensagens de uma lista de e-mails de que participava, ela ficou brava comigo: Mas como você pôde me esconder esse tempo todo que você tinha gagueira? Isso pode parecer estranho, mas é perfeitamente possível.

É que há diversas formas de gagueira, desde as mais graves e visíveis até as mais leves, que acabam passando despercebidas pelos ouvintes. Por dentro, porém, mesmo a mais discreta dificuldade de expressão gera um turbilhão de sensações, de emoções e de frustrações. A administração desse conjunto de reações não é fácil. A tendência a se afastar do convívio social ou a evitar determinadas situações de risco deve ser superada pelo padecente. Como hábito profundamente enraizado em sua memória corporal, a gagueira entra na sua vida e exige adaptações de variada natureza.

A pesquisa sobre as causas da gagueira e a concepção de tratamentos ainda hoje estão em seu nascedouro. A ciência ainda não é capaz de compreender um problema tão complexo. A maioria dos fonoaudiólogos foge do problema e não se interessa verdadeiramente pelo assunto. Há um consenso em relação à possibilidade de cura: em tese, é possível. Quando mais cedo se procurar o tratamento, maiores são as chances. Geralmente depois do começo da adolescência o tratamento passa a ser apenas paliativo. Através de exercícios fonoaudiológicos alguns gagos relatam melhoras significativas que trazem grande alívio e são seguidas, naturalmente, pela liberação de energia para outras atividades.

Como acontece com qualquer circunstância da vida humana, a gagueira por um lado prejudica muito a nossa vida – esse é, obviamente, seu aspecto mais evidente; e por outro lado, como compensação, abre algumas possibilidades interessantes. “Pois o Deus todo-poderoso…, por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar o bem do próprio mal” (Santo Agostinho, citado no Catecismo da Igreja Católica, n. 311).

Há hoje no Brasil algumas associações e institutos dedicados ao estudo e ao tratamento da gagueira, geralmente dirigidos por fonoaudiólogos e por psicólogos. Sem ter feito uma pesquisa mais profunda indico-lhes dois sites (mesmo sabendo que as pessoas que gaguejam possivelmente já os conhecem e que as que não gaguejam não encontrarão razões suficientes para se interessar por um assunto tão específico e distante): o já mencionado, da Associação Brasileira de Gagueira – Abra Gagueira e o — de nome mais politicamente correto e mais motivacional — do Instituto Brasileiro de Fluência.

Que limitações a gagueira traz para a vida do padecente? Que oportunidades surgem a partir daí? A resposta a tais questionamentos exigiria, rigorosamente, uma pesquisa mais abrangente. Como me faltam vocação, habilidade e tempo para essa empreitada, deixo aqui a minha contribuição para a história da ciência. Eis o meu testemunho pessoal – mais preocupado, como ficará evidente, em lançar sementes de reflexão e em trabalhar por vezes a questão no nível poético do que propriamente em estabelecer postulados para o guiamento dos interessados:

1) Dependendo da capacidade que a pessoa que gagueja tem de suportar a tensão e de eventualmente submeter-se aos olhares de incompreensão ou de espanto dos ouvintes, a sua relação com o mundo e com o outro pode ser normal. Como os gagos são pessoas comuns, essa capacidade não costuma ser muito alta. Isso transforma sua vida em um permanente e confuso jogo de busca das oportunidades mais adequadas para falar e para se relacionar com as pessoas. Como é natural, as limitações se tornam muito visíveis: em entrevistas de emprego, na sua participação em conversas com amigos, na interação com desconhecidos, nas paqueras, enfim, na menor visibilidade que ele acaba tendo na vida social. A qualidade dos vínculos que tem com as pessoas, quando tem, não me parece peculiar. O que parece ser diferente é o número de relações que ele estabelece e a posição, muitas vezes inferior por conta da deficiência, que ele se reserva em muitas delas.

2) Assim como um deficiente físico que usa a cadeira de rodas acaba tendo mapeados na sua memória os lugares onde pode ir sozinho e qual é a melhor trajetória a ser usada quando pretende ir ao banco, ao shopping ou ao buteco de sua preferência, assim também a pessoa que gagueja acaba criando em sua memória (e, com muita frequência, também em sua fértil imaginação) locais, situações e pessoas nas quais e com as quais, umas vezes mais outras vezes nunca, ela desempenhará a difícil arte de relacionar-se através da fala. Assim como você não vai entrar, sem mais, na jaula de um leão faminto, o gago, prevendo que fracassará em sua tentativa de se expressar, provavelmente deixará de falar e procurará outra forma de passar o seu recado. Isso não impede que ele mate o leão a tiros, se o sangue lhe subir a cabeça e desde que ele esteja devidamente armado. Porém, é muito pouco provável que ele, desarmado e em seu juízo perfeito, entre na jaula do leão para convencê-lo a ser seu amigo ou a respeitá-lo apesar de tudo.

3) Como a pessoa que gagueja deixa muitas vezes de dizer o que quer e o que pensa, ela costuma ter um mundo de sentimentos, de razões, de palavras guardadas dentro do peito. O forno alquímico, se estiver aceso, terá muito material com que trabalhar. Toda panela de pressão necessita de uma válvula de escape. A arte, o lugar do simbólico, costuma ser uma excelente opção para expressar os conteúdos que, caindo de incógnitas criptas misteriosas, esbarraram no mulambo da língua paralítica. Se a pessoa souber trabalhar artesanalmente sobre a matéria de suas inquietações, tenho sérias razões para supor que a sua expressão através da arte não só lhe fará bem como terá boas chances de produzir obras objetivamente valiosas. O meu palpite é que esse é um território que a pessoa que gagueja deve explorar com todo o seu coração, orientada, como me parece adequado, por um profissional que tenha no exercício de seu ofício o discernimento dos sábios aliado à paixão dos amantes que se entregam por inteiro.

4) A pessoa que gagueja não apenas deixa de dizer o que quer e o que pensa, mas também deixa muitas vezes de dizer o que precisa dizer. Esse é um verdadeiro problema. Isso pode deixar nela a sensação de defasagem em relação ao mundo e às pessoas. Ao mesmo tempo em que (e em razão mesmo de que) se afasta do mundo, ela tem a sensação, natural, de que o mundo está privado de sua pequena mas necessária intervenção. A sensação de que o mundo e as pessoas são seus credores, aliada ao seu frequente estado de insolvência comunicativa (as mais das vezes fruto de sua rica imaginação), eleva a taxa de ansiedade a níveis muitas vezes dramáticos.

5) Como as pessoas veem o gago? Depende muito do modo como a gagueira afeta o desenvolvimento da fala do indivíduo e também da maneira como ele próprio encara a própria deficiência. Você já deve ter conhecido um gago convicto. É difícil não se desarmar perante quem se aceita como é e que, não raras vezes, até mesmo ri de si mesmo. O gago convicto sabe que para amar ao próximo como a si mesmo é preciso, antes, amar a si mesmo. A aceitação de seu próprio estado contribui, ou antes é um pressuposto, para reduzir o sofrimento que a gagueira potencialmente traz para a nossa vida. Por sua vez, o gago inconformado costuma chamar para si ou a compaixão compreensiva ou a zombaria e o desprezo dos outros. Nesse sentido, a pessoa que gagueja pode ser causa de queda para alguns e de reerguimento para outros, sinal de contradição que revela os pensamentos de muitos corações.

6) Como a vida ideal para a pessoa que gagueja é a vida da fala fluente, ocorre que quando ela eventualmente consegue ter sucesso em falar sem atropelos, quer tenha sido a sua intervenção oral longa ou curta, esta vida, a sua vida mesma, se transforma para ela, repentinamente, em uma vida plena. Suspeito então que o gago terá com muita frequência visíveis oscilações de humor.

7) Como o mundo ideal para o gago é o mundo em que ele mesmo se veja falando fluentemente, é comum que a característica humana que ele mais observa nas pessoas seja justamente a capacidade de se expressar bem. Se não ficar atento, a pessoa que gagueja pode se deixar influenciar com indesejável facilidade, independentemente do mérito da mensagem, por qualquer um que domine meia dúzia de técnicas de persuasão retórica. É natural que surja em nós uma admiração espontânea por aqueles que têm o que desejamos ter. Precisamos lembrar que a fala é, essencialmente, um instrumento. Não é um fim em si mesma. Além disso, muitas crianças já fazem discursos retóricos escoradas no cercadinho do berço. O Espírito sopra onde quer. Isso nós já sabemos. Disso decorre que ele também deixa de soprar onde quer. Nem tudo que reluz é ouro.

8) Se a nossa vida pudesse ser comparada a uma peça de teatro, a vida da pessoa que gagueja teria como tema, sem sombra de dúvida, a comunicação, a expressão e a interação com as pessoas. Sua vida é uma constante variação, muitas vezes frustrada, em torno dessas questões. Assim como o frade franciscano anda pelas ruas à procura de pessoas necessitadas de sua ajuda, assim como o estelionatário tem o olhar treinado para identificar suas potenciais vítimas, a pessoa que gagueja tem o ouvido, o olhar, o corpo, enfim, treinado para operar a acomodação o menos danosa possível de si no universo – para ela confuso e arriscado – das relações interpessoais. Sua antena está com muita frequência sintonizada na região do peito e da garganta, que está tensionada com o ato de falar ou com a mera possibilidade de se ver colocado em uma situação de fala. Tenho razões para suspeitar que esse foco, esse direcionamento excessivo da atenção para um detalhe de si próprio, altera, com prejuízo, a percepção que a pessoa que gagueja tem do mundo ao redor e das pessoas. Porque a gagueira volta permanentemente a atenção da pessoa para uma situação que no fundo não compreende, o mundo pode acabar se tornando para si um ponto de interrogação que ela tem poucas oportunidades de contemplar no silêncio do seu coração. O mundo do gago é sempre o compasso – que foi? passou – da próxima fala. É o risco brevíssimo de tantas estrelas cadentes.

9) Uma das técnicas que algumas pessoas que gaguejam utilizam para tentar evitar a interrupção indesejada da fala é a substituição de uma palavra por um sinônimo ou por espécies do mesmo gênero. Há também a técnica da alteração da ordem da frase. Não saberia dizer se o domínio dessa técnica – um subterfúgio, é bem verdade – permite o desenvolvimento de uma maior habilidade verbal. Desconfio que a rapidez com que essas pessoas evocam uma palavra substituta seja uma habilidade incomum no homem médio. O problema é que a pessoa que gagueja, ao se utilizar desse subterfúgio, não fala exatamente o que desejava. Eis um exemplo, já clássico: a pessoa quer tomar Coca-cola, mas tem problemas em dizer isso ao garçom. As palavras Coca-cola ou Coca ou Coca Zero simplesmente não saem. Ela tem então três opções: ou vai num restaurante onde a bebida é self-service; ou pede uma Pepsi, um Guaraná, um suco de laranja; ou, na pior das hipóteses, fica sem a bebida. Nessa última hipótese, em casos mais dramáticos, o gago buscará racionalizar seu comportamento: estudos indicam que almoçar sem bebida é bom para a saúde, engorda menos e ajuda na digestão. Apesar disso, com alguma frequência essa pessoa terá a geladeira repleta de garrafas de Coca-cola, que ela, assobiando, comprou no supermercado. Muito em razão desse mecanismo (o gago muitas vezes não diz o que estava no roteiro, mas aquilo que, em frações de segundo, lhe apareceu em substituição), a pessoa que gagueja pode viver uma vida que não era exatamente aquela que havia planejado, mas outra, que lhe pareceu melhor em substituição. A gagueira é, com muita frequência, para falar como Aristóteles, um sujeito agente na vida do gago: deixa marcas profundas, pelas quais ele passa, conformado, a caminhar. A sua imaginação, muito boa em lhe apresentar fantasmas, não costuma lhe servir, aqui, para apontar outros caminhos.

10) A ideia: de onde ela vem? Segundo o poeta, vem da alta luta do feixe de moléculas nervosas, que, em desintegrações maravilhosas, delibera e, depois, quer e executa. Executa mesmo? A transformação de uma ideia em palavra falada, segundo esse memorável soneto, é um processo complicado e inevitavelmente falho na maior parte das vezes. A ideia chega às cordas da laringe, tísica, tênue, mínima, raquítica… Quebra a força centrípeta que a amarra. Mas, de repente, e quase morta, esbarra no mulambo da língua paralítica. Se é assim para Augusto dos Anjos – que não me consta fosse gago – imaginem só para nós outros! A língua paralítica, e muitas vezes o túnel fechado da garganta ou a janela cerrada dos lábios, são, para a pessoa que gagueja, obstáculos verdadeiramente físicos ao ato da fala. Talvez você não consiga imaginar o que é isso. Proponho-lhe um exercício. Imagine-se tamborilando com os dedos sobre a mesa, os cinco, em sequência. Faça isso agora, por uma dezena de vezes. Busque uma cadência entre um e outro. Agora imagine que você apresenta uma dificuldade especial de coordenar, após o segundo toque, o toque do terceiro dedo, o dedo médio. Simule essa dificuldade. É natural que você queira pular para o quarto dedo e continuar a sequência. Amputar esse terceiro dedo, fazer de conta que ele não existe, é uma tentação, em nome da manutenção da ordem, da sincronia, da estética da arte de tamborilar. Pois é. A pessoa que gagueja tem um problema parecido e não tem a menor ideia de como resolvê-lo. Para ela o mundo está dividido entre os que podem tamborilar com os cinco dedos e os que não podem.

11) Algumas pesquisas indicam que pode haver uma predisposição genética para a gagueira. Nesse caso, uma situação conflitiva pode desencadear a disfluência. Para a psicanálise – em uma abordagem que talvez não exclua a primeira –, um sintoma como a gagueira é, no bom português, a melhor coisa que a pessoa conseguiu fazer para evitar uma dor maior – ou que ela imaginava maior. É, amigos, o sistema é bruto. Em outras palavras, segundo essa concepção, a gagueira seria uma defesa que a pessoa criou contra o mundo e contra as pessoas, em razão de alguma(s) situação(ões) vivida(s) no passado, geralmente na infância. Como quase tudo em psicanálise (ou, mais propriamente, como quase tudo em nossa vida), o ladrão vai-se embora e nós ainda continuamos com a arma apontada para a porta – quando não estamos vergonhosamente escondidos embaixo da cama. Seja como for, a gagueira é um sinal visível de um conflito interior, um alerta anunciando a sua existência, como uma criança puxando a saia da mãe que, distraída com seus afazeres, já dava sinais de tê-la esquecido. Nesse sentido, a porta entreaberta e a palavra mais certa a que Gonzaguinha se refere em Grito de Alerta — uma canção que na verdade não trata exatamente deste assunto — podem nos proporcionar boas reflexões.

12) O problema da pessoa que gagueja é com a forma da fala. Há um desequilíbrio entre forma e conteúdo. Geralmente há muito o que dizer, mas o sistema articulador da fala não ajuda. Se o gago não costuma dar vazão às suas ideias através de outro canal de expressão, suspeito que a sua capacidade de elaboração de conteúdos, como um carro estacionado por meses na garagem, possa ficar prejudicada. Há uma outra relação possível aqui entre forma e conteúdo: quando a pessoa que gagueja domina um assunto, sabe discorrer sobre todos os seus aspectos e se sente à vontade com eventuais questionamentos que lhe possam ser dirigidos pelos ouvintes, há a tendência de que ela se expresse com maior naturalidade e sob níveis mais baixos de tensão.

13) Diz a lenda que existe cura para a gagueira. Segundo o site da Abra Gagueira, existe sim, “[d]esde que o tratamento seja aplicado antes da adolescência (12 anos, aproximadamente). A capacidade de aprendizagem do cérebro de uma criança é enorme, enquanto que a de um cérebro adulto é bem menor. A queda da capacidade cerebral de aprendizagem ocorre no início da adolescência e, por esta razão, é melhor que o tratamento seja aplicado antes dos 12 ou 13 anos. Esta capacidade de aprendizagem costuma ser referida como ‘plasticidade cerebral’. Seja como for, para Deus nada é impossível. Há profissionais que, divergindo da opinião majoritária da classe, divulgam tratamentos de cura da gagueira para adultos. Minha singela opinião: tratamentos que prometem a cura nesses casos se assemelham, por exemplo, a uma professora de música que prometesse transformar qualquer criança em um Mozart. O que quero dizer é que o tratamento da gagueira exige a participação ativa do paciente. E em muitas vezes o paciente não consegue abrir mão, em outras não está disposto a isso, – se é que está mesmo consciente que deve e principalmente do que deve abrir mão – para que sua voz seja ouvida e respeitada. Ser alguém exige responsabilidade, exige assumir as consequências pelos seus atos. Drummond já advertiu para esse risco: “Vai o meu elefante pela rua povoada, mas não o querem ver nem mesmo para rir da cauda que ameaça deixá-lo ir sozinho”. Falar e ser ouvido pressupõe, sempre, o risco de não ser compreendido, de ser mal-interpretado, criticado, vaiado, de ser deixado de lado, de ser agredido, de ser, enfim, tratado pelo outro como um adulto capaz de administrar suas próprias opiniões e de se responsabilizar, na solidão de sua própria presença ou no meio de uma plateia hostil, por ser a pessoa que disse aquilo e que está disposta a sustentá-lo até as últimas consequências. O mundo hoje está carente de pessoas assim. É certo que não são só os gagos (ou, mais propriamente, alguns gagos) que experimentam esse défict. Mas a verdade é que nestes casos específicos vejo muitas outras coisas que não ouso compreender e que incidem em sua difícil situação existencial de modo a torná-la mais complexa que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias.

14) Já falei do sofrimento que a gagueira costuma proporcionar aos padecentes, sofrimento que pode inadvertidamente fazer parte do pano de fundo da sua existência. De fato, há uma peculiar melancolia que se arrisca a acompanhar a pessoa que gagueja. É que seu cotidiano é marcado por uma série de batalhas, de muitas das quais ela sai, pelo menos na sua imaginação, derrotada. Muitos gagos podem dizer, como Drummond: “Eis o meu pobre elefante pronto para sair à procura de amigos num mundo enfastiado que já não crê em bichos e duvida das coisas”. Em gagos convictos, a que já fiz menção, também sou capaz de ver um fundo de resignação. Essa resignação, quando bem utilizada, quando bem compreendida, pode ajudar a pessoa a aceitar com maior boa vontade outras aflições de que nossa vida comum e corrente está repleta em demasia.

15) O mecanismo da fala da pessoa que gagueja a sujeita a um grau elevado de desfragmentação. Seus esforços podem cair sobre o tapete, ao final do dia, qual mito desmontado. Possivelmente em busca de compensar essa situação, em busca de unidade, a pessoa que gagueja pode se tornar bastante tensa em sua disposição corporal e excessivamente rígida em seus julgamentos. A sensação de que ela foi deixada só por Deus, de que foi castigada, pode trazer a sensação de que vive em um mundo desordenado e sem leis. A tentação de ordenar o mundo – ou pelo menos a sua vida – por meio de suas próprias forças pode ser um dos elementos dessa rigidez. A confiança em Deus e a gradativa entrega à sua Providência é, também aqui, muito importante.

16) O filme O discurso do rei (2010) deixa insinuada a tese de que, naquele caso, a gagueira do personagem principal era alimentada por um misto de ressentimento e de raiva que ficavam camuflados atrás da aura da respeitabilidade que a condição de filho do rei lhe impunha. É muito compreensível que se em determinada fase da vida — ou se durante toda a sua vida — você não foi capaz de expressar sua opinião e, portanto, de tentar fazê-la prevalecer, acabará se sentindo derrotado (antes mesmo de colocar o cavalo para correr) e culpando a si mesmo ou ao mundo por sua derrota antecipada. O campo para a proliferação de fantasias e de neuroses está, dessa forma, aberto e sem cadeado.

17) A ciência e a técnica ainda não são capazes de resolver o problema das pessoas que gaguejam. Há relatos de pacientes que recebem alta do fonoaudiólogo, após algumas sessões, sem que tenham apresentado qualquer melhora. Esse estado de coisas tem o potencial de diminuir a confiança, por assim dizer, que o gago tem na capacidade que a ciência e a tecnologia se atribuem – e que, até um certo limite, inegavelmente têm – de melhorar a vida das pessoas. Como você se sentiria se a ciência e a técnica não tivessem qualquer orientação segura para lhe apresentar a respeito do problema que mais o atormenta? Que não se veja aqui qualquer murmuração contra o assim chamado avanço científico – ou, aqui, mais exatamente, contra a falta dele. No meu modo de ver as coisas, não estamos evoluindo em direção a nada. A Terra é redonda, cheia de vales e de montanhas. A experiência humana é constituída, segundo a compreendo hoje a partir da modesta posição que ocupo na Criação, de altos e baixos: em um momento evoluímos, em outro involuímos. E não há garantia de que uma coisa ou outra irrevogavelmente aconteça segundo sopram em nossos ouvidos os discípulos mais convictos de Augusto Comte.

18) O sofrimento proporcionado pela gagueira e a ausência de uma resposta adequada, com vistas na diminuição dessa dor, por parte da ciência e da técnica (atividades em que estão os novos sacerdotes, por assim dizer, em que grande parte das pessoas deposita hoje sua ) podem fazer nascer na pessoa que gagueja a necessidade de trilhar seu próprio caminho terapêutico. Como consequência ela pode se interessar em pesquisar, por si só, uma grande variedade de temas relacionados, direta ou indiretamente, com a sua questão existencial, ou pode simplesmente, sozinha, perder-se em um labirinto de cacoetes, de crenças e de artifícios fantásticos visando a evitar a disfluência na fala. Isolar-se não parece ser aqui, nem de longe, a melhor opção.

19) A gagueira pode deixar a pessoa em um permanente estado de inquietação. Um indivíduo que tenha sido acometido por uma mudez definitiva provavelmente encontrará modos de se comunicar compatíveis com a limitação de que parece e, de mais a mais, não terá diante de si o desafio de tentar ser fluente em cada nova oportunidade de diálogo. O gago, desde que não se tenha resignado e se fechado ao mundo, é diuturnamente desafiado a superar sua dificuldade, a se expressar melhor e a ser compreendido pelas pessoas através da fala. Aqui, mais uma vez, nosso caso é uma porta entreaberta — não estamos nem escancaradamente abertos ao outro nem irrevogavelmente fechados. Muito poucas pessoas estão dispostas a mudar o nível da perspectiva que adotam em seus relacionamentos. Se alcançássemos um padrão mais amoroso em nossas relações com o outro (e esse é um dos principais objetivos da vida cristã), a convivência com o problema da gagueira — e com milhares de outros que pesam sobre os ombros de muitos de nós — seria mais leve.

20) Joguemos nossas redes em águas mais profundas. Haverá um significado espiritual na gagueira? Para quem tem olhos de ver, tudo pode ser encarado sob esse ponto de vista, porque na origem de todo ser está o Ser que não foi criado. Valho-me aqui da resposta que Nosso Senhor deu a seus discípulos, curiosos que estavam em saber a razão pela qual o cego de nascença apresentava essa deficiência: para que se manifestem nele as obras de Deus! (Evangelho Segundo São João, Cap. 9). Para que compreendamos plenamente o significado dessa explicação, talvez seja necessário que, com a ajuda de Jesus Cristo, tomemos e carreguemos a nossa cruz.

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