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A beleza salvará o mundo

O título do livro de Gregory Wolfe, lançado há pouco no Brasil, é uma frase de Dostoiévski: a beleza salvará o mundo. A ideia é, a princípio, um pouco estranha. Em primeiro lugar, o mundo não está aí para ser salvo. Ele tem o seu príncipe e com ele já está julgado (Jo 16:11). Em segundo, se há algo a ser salvo é a alma dos homens; e essa será salva se Deus assim quiser. Apesar de tudo isso, a frase, se bem interpretada, pode nos ensinar algo a respeito da realidade.

Sim, em algum sentido é verdade que a beleza salva o mundo – se bem que seria melhor dizer: nos salva do mundo. A beleza “salva” no exato sentido em que, assim como a verdade e a bondade, é um canal que nos mostra, através de degraus, alguns aspectos de Deus. Segundo um ensinamento que se atribui a Platão, a beleza é o esplendor da verdade. Para os Escolásticos (filósofos medievais que desenvolveram a filosofia aristotélica à luz da Revelação Cristã), uma coisa está ligada a outra: a beleza nos dá acesso à verdade; a bondade é bela; e a verdade é, em sua inteireza, boa também – porque nos liberta. Todas elas nos encaminham à unidade e, enfim, ao próprio Deus.

Tudo isso é muito bom, bonito e coerente. Mas, falando de vida concreta, parece-nos algo impraticável e distante de nosso dia a dia. Em poucas palavras, a ideia nos parece muito bem intencionada, mas fora da realidade.

Porém, não é assim. É verdade que a maior parte da vida das pessoas não lhes proporciona acesso evidente à beleza – que usualmente nos chega pelos sentidos e também pelo contato com as pessoas e com as ideias. Em quase todos os cantos do país há tantas construções feias (empilhamentos quase-aleatórios de tijolos sem qualquer preocupação estética), há no ambiente tanta música ruim, tantos programas de televisão desarranjados; além disso, as pessoas têm despejado sobre as outras tantos sentimentos e tantas expressões de incompreensão que corremos o sério risco de já não crer na beleza, na verdade e na bondade. Em um mundo assim, o relativismo, o ceticismo e o cinismo são as filosofias da moda – e a vida das pessoas começa a não dar muito certo (e elas não sabem bem por quê).

Onde, então, encontrar a beleza? Algumas pistas talvez ajudem: i) a beleza é melhor percebida na simplicidade (ver a beleza na complexidade talvez exija uma sensibilidade que a maioria das pessoas já não tem); ii) a beleza está na harmonia e na proporção entre as partes do todo (a decoração da casa e a manifestação de um sentimento obedecem a regras mais ou menos parecidas, que têm uma fonte comum); e iii) quem percebe a beleza naturalmente participa dela em alguma medida (por isso o contato constante com a beleza ajuda a sensibilizar a nossa alma).

Em todos os lugares (alguns mais, outros menos) é possível encontrar manifestações de beleza: uma mesa de almoço simples mas bem posta, uma comida bem-temperada, feita com amor; uma casinha modesta mas limpa e bem arrumada, uma bela canção caipira, uma ária de Mozart, uma cantata de Bach, uma árvore bem cuidada, um gesto inesperado de bondade, um texto bem escrito, um breve silêncio meditativo depois da Eucaristia – tudo isso nos pode ir acostumando a apreciar a harmonia que existe ao nosso redor como dádiva gratuita. Tudo isso é muito precioso e deve ser defendido com um fervor quase-religioso. A beleza que há nas coisas simples e a simplicidade que há na beleza talvez não salvem o mundo, mas podem salvar um pouco da nossa humanidade.

(Publicado no Diário do Rio Doce em 27.02.2016)

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Como o gosto da pena assim se fia?

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