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Tema e voltas (Manuel Bandeira)

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se nos céus há o lento
Deslizar da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se lá fora o vento
É um canto na noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se agora, ao relento,
Cheira a flor da noite?

Mas para quê
Tanto sofrimento,
Se o meu pensamento
É livre na noite?

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O Rio (Manuel Bandeira)

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

Noite morta (Manuel Bandeira)

Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela uma
procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite…

(Não desta noite, mas de outra maior.)

Fotógrafo de si mesmo

Um adolescente estava fumando um cigarro de maconha com seu amigo, próximo da linha férrea da Vale, que passa pela região central de Governador Valadares, MG. Lá pelas tantas, decidiu sentar sobre os trilhos para tirar uns ‘selfies’. Colocou nos ouvidos os fones do celular (provavelmente para ter uma sensação mais intensa) e ficou ali, ouvindo música alta e tirando ‘selfies’. O amigo, que não estava com fones no ouvido, ouviu a óbvia locomotiva se aproximando (tão simples, tão certa). Mas não conseguiu estabelecer um contato eficaz com o amigo, fotógrafo de si mesmo. Para o jovem, foi o fim do caminho. Se o dia dele foi bom, eu não sei. Mas ali, no espaço interditado, a noite desceu sobre seu corpo (a noite com seus sortilégios).

Carrego comigo (Carlos Drummond de Andrade)

Carrego comigo há dezenas de anos há centenas de anos o pequeno embrulho. Serão duas cartas? será uma flor? será um retrato? um lenço talvez? Já não me recordo onde o encontrei. Se foi um presente ou se foi furtado. Se os anjos desceram trazendo-o nas mãos, se boiava no rio, se pairava no ar. Não ouso entreabri-lo. Que coisa contém, ou se algo contém, nunca saberei. Como poderia tentar esse gesto? O embrulho é tão frio e também tão quente. Ele arde nas mãos, é doce ao meu tato. Pronto me fascina e me deixa triste. Guardar um segredo em si e consigo, não querer sabê-lo ou querer demais. Guardar um segredo de seus próprios olhos, por baixo do sono, atrás da lembrança. A boca experiente saúda os amigos. Mão aperta mão, peito se dilata. Vem do mar o apelo, vêm das coisas gritos. O mundo te chama: Carlos!…

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