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Sentimentos oceânicos

Quando tinha nove ou dez anos, experimentava sentimentos oceânicos quando acordava às cinco e meia da manhã para jogar futebol com meus amigos nas quadras do Conjunto IAPI, em Belo Horizonte, MG. Àquela hora as quadras estavam vazias e os portões, fechados. Era preciso pular o alambrado para ter acesso ao seu interior. Tudo isso dava a esse evento um certo ar místico. No meio da manhã e à tarde as quadras estavam sempre cheias de turmas de colégio ou de grupos de adolescentes jogando futebol; à noite era o momento dos adultos. Diferentemente, às cinco e meia da manhã a quadra não era de ninguém. Enquanto todos dormiam profundamente, começávamos o dia declarando o domínio de nossos corpos em relação ao espaço já dividido (se bem que caoticamente dividido, na maior parte do tempo) pelos mais velhos. No conjunto habitacional cercado pela Avenida Antônio Carlos e pela Favela Prado Lopes, havia, ali dentro, por breves instantes, um tempo e um espaço em que cabia o nosso mundo inteiro.

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Meus encontros com o verdadeiro, com o belo e com o bem

No panorama das duas famílias que se uniram no casamento dos meus pais não conheço nenhuma vocação intelectual desenvolvida. Nas raízes próximas da minha família tínhamos fazendeiro, vigilante noturno, marceneiro, policial, comerciante, representante comercial, ajudante de enfermagem, cozinheira, costureira, secretária: são essas as profissões que me antecederam na carne. No meio desse deserto intelectual nasceu uma árvore resistente: o meu pai.

Pouco ou nada posso dizer sobre esse fenômeno ecológico – que é menos incomum do que me pareceu durante os muitos anos da minha adolescência. Para meu avô, estudar era coisa ‘pra rico’; pobre tinha é que trabalhar. A verdade é que diante da convocação de meu avô para que enfim fosse iniciado no ofício da marcenaria em sua oficina, meu pai frustrou-lhe as expectativas e, em um gesto de independência cuja matriz talvez tenha sido inoculada em mim, decidiu que iria terminar o segundo grau através de um…

Quem quer mudar o mundo?

Em um dos meus últimos artigos (“Direita e esquerda”), pretendendo indicar que a complexidade da vida não comportava uma posição unívoca em relação à modalidade de participação do Estado na vida social, acabei dizendo que eu era ao mesmo tempo conservador e progressista. Com isso corri o risco de ter dito muito sem, na realidade, dizer nada. Vejo, então, que preciso me explicar.

A conservação e a renovação da vida (e, portanto, das ideias e dos costumes) são duas realidades das quais não podemos escapar. A saúde de uma nação depende do equilíbrio entre essas duas funções. Por circunstâncias diversas, ocorre que em determinadas épocas a visão conservadora ou a progressista toma conta do imaginário social e passa a dominar os discursos. Com o tempo, a hegemonia de uma visão a torna onipresente. Se não há dinamismo suficiente para que ela seja renovada à luz das circunstâncias novas de cada dia, ela…

Aqueles pedaços de pano pendurados…

Numa certa época, eu evitava comprar em lojas especializadas em ternos para gente que vai na formatura de parente. Não me caíam bem. Por outro lado, não tinha dinheiro suficiente para entrar em lojas de grife. Por isso dei graças a Deus quando conheci um alfaiate em Belo Horizonte, um senhor experiente e muito caprichoso, que fez praticamente todos os ternos que usei nos primeiros anos da Promotoria de Justiça.

Esse alfaiate só tinha um defeito (grave defeito): ele nunca cumpria prazos. O pobre coitado tinha problema com alcoolismo. Isso imprimia no seu trabalho um ritmo muito próprio — não porque fosse preguiçoso, mas porque, profundo conhecedor de sua própria alma, sabia que não podia ter muito dinheiro no bolso (no caminho da oficina há um bar em cada esquina). Assim, as paredes de sua salinha de trabalho eram compostas pelas encomendas que ele ia estrategicamente acumulando como quem empenha…

Últimas palavras de Bento Santiago, o Dom Casmurro: o exame de consciência em seu leito de morte

À beira da morte, sinto-me estimulado a reavaliar, leitor, a minha história, em uma nova e quiçá derradeira tentativa de unir as duas pontas de minha vida. Ficarão registradas aqui as principais linhas daquilo que essa tarefa tem acrescentado à minha já conturbada vida reflexiva.
Tenho convivido com algumas enfermeiras, que vêm cuidando do que restou de minha saúde; o modo como essas moças tratam os moribundos – como tratamos, nos minutos que antecedem a partida, os parentes distantes que conduzimos à estação, quando sua visita já nos começava a causar contratempos – despertou em mim um sentimento novo: estou finalmente naquela estação tão temida, aguardando o último trem da noite – não desta ou daquela noite, mas de outra maior. Tenho as malas prontas ou esqueci algo? Conseguirei um bom assento? Deus me conduza a um bom descanso! Não me fiz padre; mas, valei-me Nossa Senhora!, sempre nutri grande apreço pelo sacerdócio e pelas coisas…

Responses

  1. Que mágico esses sentimentos! Faz a gente reviver os nossos mundos da infância, da minha rua Paracatu do JK em Montes Claros, do pé de caju no quintal, e tantas outras coisas… lembrar dos meninos da Rua Paulo… Muito bom Bruno! Obrigada!