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Ministério Público: a sua vocação é como um rio correndo em direção ao mar

Como dizia Riobaldo Tatarana, viver é muito perigoso. Pode ser difícil, também, quando obstáculos praticamente insuperáveis acabam nos desviando um pouco do trajeto. Mas, vejam: nem sempre é assim. Todo mundo tem um dom em cujo exercício tudo flui naturalmente como um rio correndo em seu leito. Quando Deus lhe chama a uma atividade, saiba: ele já pavimentou a estrada antes. O problema é que não gostamos de seguir a sinalização; começamos a percorrer a estrada de nossa vocação e, meio cegos, logo tomamos falsos atalhos e caímos em becos sem saída. E há também os que entram em estradas atraentes que, porém, não lhes pertencem.

A maioria das minhas próprias dificuldades, eu costumo vencê-las a trancos e barrancos. Há na minha vida, entretanto, desafios que venci com tanta tranquilidade que é plenamente justo dizer: não fui eu, mas foi Deus quem os venceu por mim. Foi assim com a escolha da minha profissão e com a entrada nos ministérios públicos estadual e federal – desafios que enfrentei “como a água fluindo no leito de um rio”. Nos altos e baixos da profissão, quando penso em me dedicar a outra atividade – talvez mais criativa e menos conflituosa – eu me lembro da imagem de um rio correndo em direção ao mar e me convenço: aqui é o meu lugar.

A preparação para o ingresso nas carreiras jurídicas no Brasil (magistratura, Ministério Público e advocacias públicas) é hoje um ramo da economia. E isso pode confundir muita gente, que tem então a ilusão de que entrar, por exemplo, no Ministério Público, é como entrar na fila para comprar uma bolsa da Hermès: basta querer e preencher determinados requisitos que você logo será aprovado. Porém, não me parece que seja assim. Todos nascemos com determinado temperamento e desenvolvemos desejos e motivações que nos indicam as profissões mais favoráveis. Para escolher a profissão certa, é necessário ter coragem para se conhecer a si mesmo.

Muita gente estuda para o concurso do Ministério Público, mas não quer ser promotor de justiça de verdade. A maioria das pessoas pensa que quer, gosta de achar que quer ou, no máximo, queria muito querer; tem um mero desejo de alcançar um emprego atraída pelos benefícios que a carreira oferece. Aqui está a diferença entre o mero desejo e a vontade. O desejo é do estômago e busca vantagens sensitivas (“vou passar no concurso para comprar coisas, para ficar bonito, para ser admirado“). Já a vontade busca algo que transcende o próprio indivíduo (“vou passar no concurso para tentar fazer a coisa certa, para colocar bandido na cadeia, para ajudar pessoas e, além de tudo, para poder me sustentar financeiramente“). Vejam que a vontade alcança porções maiores da realidade. Logo, ela é mais duradoura e eficaz porque já contém em si boa parte das tensões que uma vida de estudos naturalmente lhe apresentará. A vontade quer a coisa inteira, com as inevitáveis partes desagradáveis; quer inclusive os obstáculos para poder superá-los. O desejo só quer a parte gostosa. O desejo quer comer o bolo de chocolate mas não quer engordar e nem sentir culpa. A vontade compra os ingredientes, prepara a massa e, na hora de servir o bolo, alegra-se em oferecê-lo aos amigos e ficar com a menor parte.

Se algo em você diz que seria bom ser aprovado no concurso do Ministério Público, volte aqui mais vezes nas próximas semanas. Tentarei ajudá-lo a ver com mais clareza a natureza desse fenômeno e a encontrar maneiras mais eficazes de resolvê-lo. Pois a colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos.

(Publicado no Diário do Rio Doce, em 05.04.2016)

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Quem quer mudar o mundo?

Em um dos meus últimos artigos (“Direita e esquerda”), pretendendo indicar que a complexidade da vida não comportava uma posição unívoca em relação à modalidade de participação do Estado na vida social, acabei dizendo que eu era ao mesmo tempo conservador e progressista. Com isso corri o risco de ter dito muito sem, na realidade, dizer nada. Vejo, então, que preciso me explicar.

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Há metafísica bastante em não pensar em nada (Alberto Caeiro)

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por…

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