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Os anos da beatlemania – que ficaram para trás

Não escuto mais os Beatles como antes, não me interesso mais pelas gravações raras da banda e não quero mais conversar sobre sua contribuição para a paz mundial. Tudo isso deve causar algum estranhamento a quem me conheceu há quinze anos. Para acalmar o espírito de alguns de meus amigos talvez eu lhes deva uma explicação.

Tenho alguma noção do que aconteceu. Colocarei aqui algumas peças que se foram encaixando e que me fizeram perder completamente o interesse pelas músicas beatles. Se ainda os escuto hoje, raramente, não se assustem. É nostalgia, a mesma nostalgia que sinto quando escuto Superfantástico ou Aquarela, lembrando de uma época em que todos os meus problemas pareciam estar tão longe… Sim, é a minha vida; aquele adolescente é, de algum modo decisivo, parte da minha própria biografia. Fez parte da longa e sinuosa estrada que me trouxe até aqui. Acredito já ter assimilado esse traço juvenil, após algumas transformações, em minha vida hoje. Mas é apenas um traço — que eu reconheço mas que não encontra mais forças para competir — ou para se relacionar com frutos — com as interessantes experiências simbólicas que hoje tenho com a música e com a literatura. Eu até que tento uma interlocução — anyway you’ll never know the many ways I´ve tried –, mas vira e mexe, daqui e dali, e lá estou eu, ao mesmo tempo um pouco (ainda) beatlemaníaco e um tanto tentando me limpar das muitas besteiras filosóficas que absorvi em centenas, talvez milhares, de horas de audição…

Sei que com esta confissão corro o risco de perder eu próprio o afeto de uma dezena de amigos, com quem eu compartilhei meus anos dourados de beatlemania. Mas há amizades que são primas da verdade; e essas, muito mais que lindas, elas ficarão.

Sentem-se que aí vem um testemunho arrasador. Para a maioria de todos vocês, que não me conheceram no final da década de 90, eu era assim: fui um projeto de guitarrista-solo de uma banda cover dos Beatles e como tal respirava os acordes e as melodias de suas canções boa parte do meu dia; cem por cento da minha — como direi? — vida musical era dedicada a ouvir, entender e copiar as músicas dos Beatles no meu violão Gianinni e nas minhas guitarras Aria Pro II e Fender Telecaster. Lá então, all my troubles seemed so far away…

Quando eu visitava a casa de parentes e encontrava os LPs de outros artistas, nacionais e internacionais, ficava espantado por não encontrar, senão muito raramente, uma gravação de uma versão das músicas do quarteto. Lá então achava que eles eram o crème de la crème da música da segunda metade do século XX. Vibrei de empolgação quando, por exemplo, vi a frase, na quarta-capa de uma revista de cinema: “Muitas bandas revolucionaram a música; eles revolucionaram o mundo”. Tudo ia mundo bem até que um dia acabei descobrindo que o sonho acabou.

Quanto mais alta é a ilusão maior é o tombo. A forte admiração que eu tinha por eles parece ter sido a causa material do magnífico desencanto que me tomou de assalto nos últimos anos.

Se John Lennon e George Harrison fossem hoje vivos e os demais beatles resolvessem se reunir para um show revival na minha cidade, talvez — mas só talvez — eu comprasse duas entradas, mas é possível que, para fugir do barulho e do trânsito, eu preferisse assistir a um resumo do evento feito pelo noticiário local, de preferência na imprensa escrita. O que terá acontecido?

Em resumo, descobri que aquela fantasia, de uma banda do interior da Inglaterra que conquistou o mundo com o seu carisma; que essa historinha, que me cativava grandemente, não tem, hoje, a menor graça. Tecnicamente eles estão — reconheçamos — acima da média. Já estavam naquela época; que dizer hoje, quando o nível de qualidade da música popular está incrivelmente baixo?

O interesse se foi e eu nem dei por isso. Hoje quando olho para trás, lembro de alguns fatos que foram me despertando desse sonho juvenil. Talvez essa referência o ajude a se libertar também. Nesse sentido este testemunho pretende ter um caráter motivacional. Eu quero apenas o seu bem. Pense nisso:

a) na minha adolescência assisti por diversas vezes a um documentário chamado, se não me falha a memória, Os anos da Beatlemania – que eu gravei em modo SP na fita do videocassete, para que nela coubessem completas seis horas de mais documentários e clipes beatles. No ponto em que se contava sobre o lançamento do segundo disco dos Beatles, o With the Beatles, dizia-se sobre a positiva sensação que ele causou na opinião pública; e contou-se que determinado músico profissional, talvez um regente de orquestra — não me lembro –, comunicou ao quarteto que identificara “certas cadência eólicas” na música Not a second time. Lembro-me bem da reação do John Lennon, que me ficou registrada como algo parecido com: “Tudo bem, não sei do que você está falando, mas reconheço que a música que fiz é muito boa mesmo. De todo modo obrigado pelo elogio e continue comprando nossos discos”.

Quando ouvi sobre as tais cadências eólicas minha alma adolescente ficou impressionada. Havia nas duas palavras, “cadências” e “eólicas”, um mistério muito profundo. Aquela declaração do experimentado músico, aquele reconhecimento da genialidade do quarteto, eram de alguma forma uma indicação de que minha adolescência estava no caminho certo. Não sabia o que eram cadências eólicas, mas aquela expressão era a confirmação de que eu fazia parte, com minha guitarra e com minha banda cover, de uma coisa muito interessante, muito grandiosa. Hoje, contudo, eu sei como essas coisas costumam acontecer. Sabe como é: um elogio feito a uma banda em ascensão, por um desconhecido, é, de um modo muito curioso, um elogio a si próprio. O analista musical, então um joão-ninguém, através de um simples elogio – que até hoje certamente ninguém sabe se foi merecido – tem conseguido ser mencionado pela imprensa cultural passados já quarenta anos; esse senhor efetivamente entrou para a história do showbusiness como aquele que reconheceu a genialidade prematura dos Beatles.

Por outro lado, interessa notar que essa descoberta fortuita daquele regente pegou John Lennon, o autor da pérola oculta, de surpresa. Ora, por que razão eu devo valorizar uma pessoa que não sabe o que está fazendo? Se eu já o valorizei antes por isso, não consigo fazê-lo mais agora, not a second time…

b) há uma cena do filme A Hard Day´s Night (um filme destinado a registrar como eles eram idolatrados, barulhentamente, pela parte histérica e carente da população feminina que buscava formas de sublimação no ano de 1963), em que os Beatles, que estão em um vagão de um trem, são advertidos por um tradicional senhor de idade, que julgara inadequado, para aquele ambiente, determinado comportamento deles. Eu assisti a esse filme há muitos anos e não me lembro propriamente dessa cena — a que um conhecido meu se referiu recentemente. Na cena, diante da advertência do senhor, um dos Beatles reage agressivamente, em tom zombeteiro, destratando-o. Conclusão: meus antigos ídolos eram, aos vinte e quatro anos, adolescentes mimados, revoltados contra os pais que compraram suas primeiras guitarras. Eu até compreendo essa fase, pela qual eu também passei (quem não passou?), mas não consigo julgá-la, hoje, digna de admiração.

c) eu nunca engoli essa estória de que “somos mais populares que Jesus Cristo”. Já aí, precocemente, o sucesso subira à cabeça de Lennon. A frase originalmente foi a seguinte “Christianity will go. It will vanish and shrink. I needn’t argue about that; I’m right and I’ll be proved right. We’re more popular than Jesus now; I don’t know which will go first – rock ‘n’ roll or Christianity. Jesus was all right but his disciples were thick and ordinary. It’s them twisting it that ruins it for me” (“O cristianismo vai passar. Ela irá desaparecer e perder a importância. Eu nem preciso argumentar nesse sentido; eu estou com a razão e o futuro provará isso. Nós somos mais populares que Jesus hoje; eu não sei qual irá primeiro – o rock ‘n roll ou o cristianismo. Jesus estava completamente certo mas seus discípulos eram obtusos e vulgares. A distorção que eles fazem é o que estraga tudo para mim”).

A frase foi dita em 04.03.1966, em uma entrevista ao jornalista Maureen Cleave, para uma série de artigos intitulada How does a Beatle live?, publicada no London Evening Standart. Lennon perdeu completamente o senso das proporções. Vaidade, orgulho e prepotência nietzscheana: força motriz impressa em grande parte de suas canções — em especial de sua carreira solo. Ouvindo-as, você está absorvendo orgulho em forma de ondas sonoras e correrá o risco de fascinar-se e de idolatrar o bezerro de ouro. Quem não crê em Deus acaba acreditando em qualquer coisa…

Chamado às falas, John Lennon, balbuciante, tentou se explicar: “Eu estava me referindo à situação da Inglaterra e ali éramos mais importantes do que Jesus era, do que a religião era”. O que ele quis dizer com isso? O que essa interpretação autêntica acrescenta à desastrada frase original? Ela a torna mais verossímil; e deixa claro que a idolatria insana dos quatro rapazes de Liverpool acabou ludibriando John Lennon, em prejuízo de sua saúde psíquica, fazendo-o acreditar que ele estava substituindo, com as lições “transcendentais” de Love me do, I want to hold your hand e She loves you (yeah, yeah, yeah!), quase dois mil anos de cultura cristã na Europa.

Ora, imerso nessa atmosfera de grande confusão, e de perigosas inversões de valores santos, não é difícil que Mark Chapman, ele mesmo já possivelmente detentor de algum distúrbio mental, tenha realmente ouvido de Holden Caulfield, o adolescente emburrado do cativante livro O Apanhador no Campo de Centeio, a sugestão para sacrificar o novo – e autoproclamado – “profeta”.

d) o clímax da carreira solo de George Harrison foi o Concerto de Bangladesh – um evento filantrópico que certamente ajudou, de alguma maneira, provavelmente mais do que eu serei capaz de fazer, quantitativamente, em anos de vida ativa, o sofrido povo daquele país asiático. Depois de uma temporada de meditação transcendental, em 1968, com Maharishi Mahesh Yogi – o guru indiano que não chegou a empolgar deveras os outros três beatles – era esperado que a alma de Harrison deixasse de reclamar dos arrecadadores de tributos e se abrisse a alguma boa ação.

Muito bem. Outro dia eu estava assistindo a uma parte de uma reportagem sobre não-me-lembro-bem-que-assunto, e eis que o jornalista, antes de estender o microfone a Harrison – que estava sentado em um sofá conversando com seus amigos zen daquela época –, pergunta-lhe: “Vem cá, George, como é que surgiu na sua cabeça a ideia de organizar o Concerto de Bangladesh?”. E então George, com cara de baiano que caiu de uma espaçonave em Paracatu, sem ter propriamente entendido quais eram as reais intenções daquele sujeito inquisidor, saiu-se com essa: “Não! Não foi bem uma idealização não. Eu estava na minha e um amigo me convidou para encabeçar o evento; e eu me perguntei, why not?”.

Por que não?!?!?!

Não sei se essa prosaica entrevista terá o mesmo impacto em você. Para mim, ela foi a gota que faltava para a completa desmistificação de Harrison – e eu e ele, certamente, saímos ganhando muito com isso.

e) a canção Imagine, lançada já na carreira solo de John Lennon, é tida como o hino pacificador de uma geração sonhadora, mais propriamente a dos hippies marcuseanos do faça-amor-não-faça-guerra. Se você fizer uma anamnese das ideias que ela contém, é provável que não encontre nela cadências eólicas (e talvez nem mesmo jônicas, dóricas, lídias ou frígias — e nem aquíferas, igneas ou terrosas…), mas descobrirá que ela foi inspirada em tantas besteiras que é impossível escutá-la sem perder alguns pontos (talvez irrecuperáveis) do quociente de inteligência. Advirto-os: sua pontuação também correrá risco se assistir à despudorada performance que John & Yoko fizeram em frente das câmeras, francamente pelados e displicentemente peludos, na cama do casal ao som de — se não me engano — Give peace a chance! Se aqui também não me falha a memória o clipe dessa canção acaba de um jeito muito estranho com gente esquisita: o casal pelado na cama com um monte de beautiful people em volta tocando violão e cantando em coro “All we are saying… is give peace a chance”. Talvez John & Yoko não estivessem exatamente pelados nesse clipe, mas a minha memória e a minha imaginação, juntas aqui dentro, já não conseguem, hoje, discernir muito bem…

Tudo junto e misturado, há em Imagine um desfile de bobeiras pacifistas que ainda hoje fazem a festa das turmas de nível dois do CCAA: há um pouco de mentalismo hermético rasteiro – lá traduzido em puro wishful thinking –, um pouco do pueril ideal comunista, uma pitada de ateísmo materialista, de coletivismo new age, um elogio do governo global e, por fim, uma retórica sentimentalista — aqui apenas amoral –que provavelmente inspirou Raul Seixas a filosofar sobre o reino onírico: sonho que se sonha junto é realidade.

Nada disso, isoladamente, os torna piores do que eu ou do que você. A questão é: não há razão para admirá-los. Eles são, em variados aspectos, tão medíocres e tão gênios quanto centenas de pessoas que eu conheço, que vão e que vêm, através da tão infértil, e cada vez mais globalizada, cultura de massas.

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V

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Começa a não saber o que é o Sol
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