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O anelo de ver desvanecida a treva espessa…

O que procuraste em ti ou fora de teu ser restrito e
nunca se mostrou, mesmo afetando dar-se ou
se rendendo, e a cada instante mais se retraindo, (…)
vê, contempla, abre teu peito para agasalhá-lo.
(‘A máquina do mundo’, Carlos Drummond de Andrade)

Como em turvas águas de enchente, eu vivi até o final da minha adolescência tardia na selva tenebrosa das pedagogias falidas, conduzidas por cegos e ‘animada’, por assim dizer, por uma plêiade de ideias feitas de palha e de homens sem fibra. O Sol e a Lua da minha segunda infância, entre eclipses e estranhos desalinhamentos, já não ofereciam orientação suficiente: muito cedo os vi apontando para dois pólos-norte. Mas a privação de alimento não afugentou a fome de sentido e significado, antes a aumentou. Submergido entre destroços do presente, porém movido por uma curiosidade intelectual insaciável, passei alguns dos mais preciosos anos da minha vida tropeçando em livros de quarta ou quinta categoria. Os companheiros de naufrágio — poucos, muito poucos — acabaram buscando a salvação em outras tábuas no vasto mar das perspectivas sem futuro. Só Deus sabe como consegui preservar um tanto assim de minha sanidade geral, como não me enveredei como tantos outros pelos caminhos tortuosos das seitas esotéricas ou nas paixões sem amanhãs do academicismo jurídico e como, depois de apanhar um pouco, fui tomando coragem para chegar na frente do espelho e ver que as relações que eu mantinha comigo mesmo, com as pessoas e com a vida em geral eram marcadas por camadas muito bem-articuladas de fingimento (ainda hoje me vi atendendo a ecos de um passado que já acreditava bem enterrado).

Dividido, subdividido, mas quanto movimento em mim procura ordem! Ao longo desse caminho — que ainda não acabou de terminar — tive de confessar minha ignorância quando minha presunção e minha vaidade teimavam em sustentar minha máscara de rapaz instruído; minhas fraquezas quando meu senso de autossuficiência insistia em me manter de pé como um espantalho; minha maldade quando achava que meu arremedo de amor às pessoas me tornava uma pessoa generosa; enfim, minhas vergonhas quando minhas conquistas me faziam esquecer que deixado às minhas próprias paixões eu era autor de misérias tão insossas e tão desprezíveis que entediariam o mais interessado dos ouvintes.

O que perdi se multiplicou e uma pobreza feita de pérolas salvou o tempo, resgatou a noite. Até que, sem que eu saiba dizer bem em que dia, mês ou ano (esse fenômeno é do tipo que não se fixa no calendário), a máquina do mundo apareceu para quem dela já se esquivava. Sim, majestosa e circunspecta, me chamou para seu reino augusto. Uma névoa marcou e ainda marca esse encontro localizado entre o antes de tudo e o hoje das minhas angústias — angústias que são pouco a pouco resolvidas em novos nomes, em gestos simples, nos encontros e nas despedidas, nas manhãs de um novo começo, nos finais de tarde em que volto pra casa (embora) fatigado e exausto de pesquisa.

Grandes são os desertos e tudo é deserto. No mar aberto de uma grande biblioteca, ouço o canto das sereias. Medito. Serei forte como Ulisses? Se abro o peito para agasalhar esse nexo primeiro e singular ou se pelo contrário baixo meus olhos, desdenhando colher a coisa oferta, é coisa por demais complexa para um sim ou para um não assim sem maiores explicações e poréns — pois as flores do jardim estão reticentes, em si mesmas abertas e fechadas. De peito aberto tenho feito muitas filosofias em segredo que eu, provavelmente, não escreverei; de olhos baixos, temo que a risada dos céus seja forte demais para meus ouvidos. Seja como for, entre o sono e o sonho, minhas obras completas já ocupam uma seção respeitável de minha biblioteca: tenho muitos livros apenas imaginados. Sou aficionado por índices — os índices dos meus livros jamais escritos. Se eles, os livros, verão a luz do Sol, eis aí um grande dilema que por si só daria um belíssimo índice. Antes de apresentá-los ao mundo, será preciso desenvolvê-los com a matéria ainda informe das minhas ideias em gestação (longa gestação) — ou será que o escrever se faz caminhando?

Escritos ou apenas imaginados, perfeitamente desenvolvidos ou apenas projetados, de todo modo peço a Deus que possa um dia oferecê-los, perfeitos e inacabados (por definição inacabados), aos pés do Senhor, como mais Lhe agradar.

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Como em turvas águas de enchente, eu vivi até o final da minha adolescência tardia na selva tenebrosa das pedagogias falidas, conduzidas por cegos e ‘animadas’ por uma plêiade de ideias feitas de palha. O Sol e a Lua da minha segunda infância, entre eclipses e estranhos desalinhamentos, já não ofereciam orientação suficiente: muito cedo os vi apontando para dois polos-norte. Mas a privação de alimento só fez aumentar a fome de sentido. Submergido entre destroços do presente, porém movido por uma curiosidade insaciável, passei alguns dos mais preciosos anos da minha vida tropeçando em livros de quarta categoria. Os companheiros de naufrágio — poucos, muito poucos — buscavam salvação em outras tábuas no vasto mar das perspectivas sem futuro. Só Deus sabe como me preservei; e como, depois de apanhar um pouco, fui tomando coragem para reconhecer, mea culpa, que as relações que eu mantinha comigo mesmo, com as…

A Máquina do Mundo (Carlos Drummond de Andrade)

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da…

Humildade (Cora Coralina)

Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.

Dai, Senhor, que minha humildade
seja como a chuva desejada
caindo mansa,
longa noite escura,
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.

Quem quer mudar o mundo?

Em um dos meus últimos artigos (“Direita e esquerda”), pretendendo indicar que a complexidade da vida não comportava uma posição unívoca em relação à modalidade de participação do Estado na vida social, acabei dizendo que eu era ao mesmo tempo conservador e progressista. Com isso corri o risco de ter dito muito sem, na realidade, dizer nada. Vejo, então, que preciso me explicar.

A conservação e a renovação da vida (e, portanto, das ideias e dos costumes) são duas realidades das quais não podemos escapar. A saúde de uma nação depende do equilíbrio entre essas duas funções. Por circunstâncias diversas, ocorre que em determinadas épocas a visão conservadora ou a progressista toma conta do imaginário social e passa a dominar os discursos. Com o tempo, a hegemonia de uma visão a torna onipresente. Se não há dinamismo suficiente para que ela seja renovada à luz das circunstâncias novas de cada dia, ela…

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