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O Sobrevivente (Carlos Drummond de Andrade)

SALA DE MÁQUINAS

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda
falta muito para atingirmos um nível ra-
zoável de cultura. Mas até lá, felizmente,
estarei morto.

Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heroicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema.)

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Platão, um dos maiores escritores de todos os tempos

Platão, um dos maiores escritores de todos os tempos, tinha tanta desconfiança em relação à palavra escrita que chegou a dizer em uma de suas cartas algo como “ninguém jamais verá um livro meu tratando das coisas de maior importância”. Para ele, o texto escrito não era capaz de “se defender”. Além disso, como sua atividade era essencialmente pedagógica, a ele parecia evidente que, assim como “cada um é cada um”, assim também cada aprendiz (ou cada grupo de aprendizes) exigia do professor uma determinada abordagem. Os livros são apenas o instrumento de experiências intelectuais ou estéticas possíveis. No caso da poesia, nem isso. No caso da poesia, o livro é apenas um artifício precário de conservação dos símbolos dos sons que compõem o poema — que só é tal quando é declamado em voz alta. O livro está para o poema assim como a partitura está para a…

Os Ombros Suportam o Mundo (Carlos Drummond de Andrade)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

 

Declamação que fiz deste poema:

https://youtu.be/5yZmCzHLqAM

Como ler poesia (e para quê): a poesia como alimento para a alma

A maioria dos grandes poetas concorda que os poemas não têm propriamente uma função. Os bons poemas simplesmente são — e isso já lhes basta. Não é possível negar, entretanto, que a poesia pode ser terapêutica na mesma medida em que não tenha a pretensão de sê-lo. Se você acha que a poesia é um mero passatempo para desocupados ou uma válvula de escape para malucos de toda ordem sugiro que repense seus preconceitos e comece a ler a boa poesia. Para ajudá-lo nessa empreitada, eis alguns motivos para você começar a ler poesia (clique sobre os tópicos para acessar os poemas):

Para descobrir onde estão as pessoas com quem você convivia na sua infância

Para entender por que a vida asfixia alguns de nossos “cantos de inocência”

Como decidir entre a psiquiatria e a poesia

Para entender o que é ter vivido…

Lampejo (Ferreira Gullar)

O poema não voa de asa-delta
não mora na Barra
não freqüenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.

Come mal dorme mal cheira a suor,
parece demais com o povo:
é assaltante?
é posseiro?
é vagabundo?
frequentemente o detêm para averiguações
às vezes o espancam
às vezes o matam
às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.

O poema se vende
se corrompe
confia no governo
desconfia
de repente se zanga
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.

O poema é confuso
mas tem o rosto da história brasileira:
tisnado de sol
cavado de aflições
e no fundo do olhar, no mais fundo,
detrás de todo o amargor,
guarda um lampejo
um diamante
duro como um homem
e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.

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