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O “baú de ossos”: em vão prende suas personagens?

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Na apresentação que fez do livro ‘Baú de Ossos’, de Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade disse que: “Para quem escreve e sente angustiosa necessidade de buscar o termo exato e ao mesmo tempo imprevisto, o ‘Baú de ossos’ é uma lição esmagadora. Como foi que o danado desse homem, preso a atividades profissionais duríssimas, que lhe granjearam fama internacional, consegue ser o escritor galhardo, lépido, contundente que é?”Pedro Nava: um homem, vários pontos de interrogação. Os grandes escritores me parecem alquimistas que, em determinado ponto da vida, encontraram em si a fórmula da pedra filosofal. Sim, porque a criação de uma obra de arte parece exigir que se ordenem dentro de si, pelo menos enquanto durar o ato de escrever, os elementos de uma alma dispersa e frequentemente conflituosa – a alma do artista.

Mas, se é assim, como pode o escritor do magnífico “Baú de Ossos” ter metido uma bala na cabeça aos oitenta anos de idade? De um lado, era um médico respeitado e profundamente inspirado pelos pequenos detalhes e pelo conjunto de uma existência familiar complexa e interessante (interessante como toda história bem contada). De outro, um homem a quem a vida já não acenava e que se matou embaixo de uma árvore no Bairro da Glória, no Rio de Janeiro. Durante muito tempo esses dois pedros não se encaixavam na minha cabeça (a experiência e a resignação vêm com o tempo). Aos poucos eles foram se encontrando na minha imaginação até se identificarem. Enfim, aceitei que se tratava de uma só pessoa: Pedro Nava, o memorialista que se suicidou. Mas como isso terá sido possível?

Matou-se em 1984. Na época, sua morte foi lamentada por todos. A imprensa não esticou o assunto. Só mais tarde, vinte anos depois, alguns jornalistas começaram a contar detalhes de uma possível suspeita muito triste que só fez aumentar o meu espanto.

Humberto Werneck, ao falar do possível ‘desregramento sistemático de todos os sentidos’, capaz, disse Arthur Rimbaud, de fazer do poeta um vidente, concluiu: “Não é descabido imaginar que Nava, ao se contar, tenha se aproximado por demais de algo que havia nele desde sempre, muito bem guardado, e que por inconfessável não deveria subir à tona, mas que ainda assim foi emergindo, inelutavelmente, até se converter, chegado à superfície, na fogueira que o consumiria”.

Em cada uma das 2.500 páginas de suas memórias, Nava se reencontrava com seus antepassados e, portanto, com sua própria carne. E, como disse o mesmo Drummond, um corpo é cheio de surpresas. Mas como saber se o debruçar-se sobre essa atividade não terá evitado que ele se suicidasse quinze anos antes? Hoje, não sabemos. Só conhecemos as coisas parcialmente (1Co 13:12).

O fato mesmo que teria levado Nava à própria eliminação (uma ligação telefônica e todo o seu contexto), os tortuosos caminhos pelos quais teria vivido seus últimos anos, a adoção de um pseudônimo a partir do quinto volume de suas memórias, tudo isso, em variados graus, são indícios de que o escritor desceu aos infernos e, com tudo o que isso implica de terrível, provavelmente não encontrou a porta de saída. Apesar dos amigos com quem convivia, também não houve Virgílio que o auxiliasse na tormentosa travessia.

Quisera Deus que ali, debaixo de uma árvore no Bairro da Glória, na noite do dia 13 de maio de 1984, entre o disparo e o último suspiro, tenha ele se arrependido de coração!

(Publicado no Diário do Rio Doce, em 04.11.2015)

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