fbpx

Hoje: gaiola sem paisagem (Alberto da Costa e Silva)

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo.
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos
enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em gravatas, por exemplo.

Related Articles

Há metafísica bastante em não pensar em nada (Alberto Caeiro)

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por…

O Menino Sem Passado (Murilo Mendes)

Monstros complicados
não povoaram meus sonhos de criança
porque o saci-pererê não fazia mal a ninguém
limitando-se moleque a dançar maxixes desenfreados
no mundo das garotas de madeira
que meu tio habilidoso fazia para mim.

A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.

De noite eu ia no fundo do quintal
pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos
que ia me levar dentro dum surrão,
mas não acreditava nada.

Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas
estou diante do mundo
deitado na rede mole
que todos os países embalançam.

Aprendamos a escrever com as lavadeiras de Alagoas!

É Graciliano Ramos quem disse:
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto

O poema Morte e Vida Severina, do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, é sem dúvida primo primeiro de Vidas Secas, de Graciliano Ramos — não só por sua temática, mas pela sensibilidade com que trata o sofrimento dos nordestinos retirantes que buscam vida nas cidades. A retirada é uma travessia entre o nada e a esperança de uma vida melhor. É o cruzar de um rio. Mas Severino pergunta:
Seu José, mestre carpina,
e quanto ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que cruzar?
Quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
A imagem da miséria, da fome, da seca e da morte como um vasto mar sem pontes acompanha-nos, os leitores, ao longo desse poema. Somos convidados, em cada vila por que passa Severino, a dedilhar uma conta a mais nesse rosário formado pelo Rio Capibaribe e pelas cidades e vilas estabelecidas nas suas…

Responses