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A distribuição do tempo (Carlos Drummond de Andrade)

Um minuto, um minuto de esperança
e depois tudo acaba. E toda crença
em ossos já se esvai. Só resta a mansa
decisão entre morte e indiferença.

Um minuto, não mais, que o tempo cansa
e sofisma de amor não há que vença
este espinho, esta agulha, fina lança
a nos escavacar na praia imensa.

Mais um minuto só, e chega tarde.
Mais um pouco de ti, que não te dobras,
e que eu me empurre a mim, que sou covarde.

Um minuto e acabou. Relógio solto,
indistinta visão em céu revolto,
um minuto me baste e a minhas obras.

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Os Ombros Suportam o Mundo (Carlos Drummond de Andrade)

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

 

Declamação que fiz deste poema:

https://youtu.be/5yZmCzHLqAM

Resíduo (Carlos Drummond de Andrade)

De tudo ficou um pouco.
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco.)

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos,
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
— vazio — de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.

De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um…

Morte do leiteiro (Carlos Drummond de Andrade)

A Cyro Novais

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.

Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho .
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro.
morador na rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro. . .
Sem fazer barulho,…

Confissão (Carlos Drummond de Andrade)

Não amei bastante meu semelhante, não catei o verme nem curei a sarna. Só proferi algumas palavras, melodiosas, tarde, ao voltar da festa. Dei sem dar e beijei sem beijo. (Cego é talvez quem esconde os olhos embaixo do catre.) E na meia-luz tesouros fanam-se, os mais excelentes. Do que restou, como compor um homem e tudo o que ele implica de suave, de concordâncias vegetais, múrmurios de riso, entrega, amor e piedade? Não amei bastante sequer a mim mesmo, contudo próximo. Não amei ninguém. Salvo aquele pássaro — vinha azul e doido — que se esfacelou na asa do avião.   Declamação, minha:

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